segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

OS SOLUÇOS SUFOCADOS PELO SILÊNCIO


(*Por: Guilherme Benvenuto Mendes)


Eduarda tinha sempre aquele sorriso melancólico, como quem sorri simplesmente por que esqueceu de parar de sorrir. Seu olhar era triste, parado, quase doentio, como quem estivesse tramando uma vingança, um roubo, um assassinato ou quem sabe suicídio. Enfim, algo que chamasse atenção, ela queria é ser notada.

Pobrezinha, tinha manchas pela pele, era obesa, tinha os lábios apagados, o nariz amorfo, pestanas grossas, mãos frias e trêmulas, cabelo seboso e sem charme. Seu olhar lembrava o de um recém defunto, no exato momento em que se expira e se esvai o último lampejo de vida; e jamais fitava alguém nos olhos. Tinha medo de que a olhassem com uma expressão de nojo, e com razão, pois de fato o faziam.

Às vezes a natureza dá expressões de grande sarcasmo e ironia. Se fosse para ser feia, que fosse inteiramente feia; se fosse para ser ruim, que fosse inteiramente ruim. Eu não compreendia por que colocar um defeito em uma pessoa virtuosa, ou colocar uma virtude em uma pessoa que quase não as tinha. Por ironia da natureza, Eduarda tinha uma inteligência incomum, de invejar até mesmo aos professores. (“Se inteligente, por que feia? Se feia, por que inteligente?!”) Ela seria capaz de exercer a profissão que quisesse. Quando vinham lhe perguntar o que queria ser da vida, ela sempre respondia:

-“Eu quero ser alguém!” Alguns até se ofendiam com a resposta. Mas ela estava apenas sendo sincera.

Ainda sim, com toda essa inteligência, não possuía admiradores, talvez não tivesse nem amigos. Na escola sempre se sentava nos fundos, escorada na parece dos cantos, sozinha e esquecida. Mal prestava atenção na aula, estava mais interessada em contemplar a ponta do nariz ou os remendos no seu uniforme. Também nem precisava, afinal, era autoditada.

Era o primeiro tempo de aula, eu estava junto de meus amigos conversando sobre o novo celular de Felipe, que fazia grande sucesso e euforia na sala. Felipe trazia em si todos os defeitos mais asquerosos cabíveis em um garoto do colegial: era invejoso, exibido, arrogante e um péssimo estudante. Por ironia era muito popular. Possuía os mais deslumbrantes apetrechos da modernidade. Perguntava-me se popular era ele ou o seu celular. Ele de certo fazia o mesmo questionamento, mas de que lhe importava, afinal, ele era popular (“Oh! Quanta beleza... mas não tem cérebro!”). Como se o celular fosse uma virtude avulsa que lhe dava grande valor, às vezes me assustava chegando à conclusão que de fato era.

Um de seus principais passatempos era zombar dos alunos impopulares. Eduarda era sua vítima preferida:

-“Agora vocês imaginem aquele celular medieval da Eduarda. Eu teria vergonha de trazer um “tijolo” daqueles na aula!” Exclamou Felipe alto o suficiente para que todos na classe pudessem ouvir e caíssem na gargalhada.

De repente, vi os olhos de Eduarda serem tomados de uma ira mortal, urgia nela um desejo de vingança que clamava por justiça. Fez-se silêncio na sala e criou-se uma grande expectativa de resposta, que não veio. Não era do feitio de Eduarda. Ela simplesmente desviou o olhar e sua expressão tomou a forma de sempre, talvez um pouco mais melancólica, como quem ouvisse uma triste peça de Chopin durante um enterro. Era seu orgulho que estava sendo “enterrado”.

Sempre guardei em mim algum valor por Eduarda. Talvez fosse pena, quem sabe compaixão. Mas tinha o sincero desejo de que ela fosse feliz. Às vezes me sentia triste olhando para ela e pensava: “quem sabe ela não passe um pouco da sua tristeza para mim e assim se torne menos triste.” Nunca me atrevi a conversar com ela. “Se a beleza abre portas”, a feiúra de certo as fecha. Além do mais não era louco a ponto de me tornar chacota da sala por ir conversar com a “esquisita”. Mas estava decidido, um dia iria falar com ela e dizer que admirava a sua grande inteligência. Talvez ninguém nunca tenha dito isso a ela, ela morava sozinha, distante dos pais e quem sabe eu pudesse ajudá-la dando esse apoio.

Quando a aula terminava, ela era sempre a última a sair da sala, ficava entretida olhando a ponta dos pés ou as unhas por fazer. Todos iam se retirando da sala um a um, sem nem sequer dar atenção a ela nem um “até logo” que fosse. Mas eu já estava decidido, depois falaria com ela, não suportava mais ver a sua agonia.

Para meu espanto, no dia seguinte ela não foi à aula, ela não costumava faltar. Isso me deixou perplexo, a ponto de ir perguntar ao coordenador se havia acontecido algo grave. Ele um pouco sem jeito me disse:

-“No dia anterior como de costume eu passei trancando as salas e não percebi que ela ainda estava lá. Coitada, ficou horas presa na sala sem ninguém para socorrê-la. Deve ter se sentido mal e não veio à escola.” Decidi então perguntar ao coordenador o endereço dela, quem sabe ela estivesse precisando de consolo.

À tarde daquele mesmo dia, fui até a sua casa. Era pequena e muito humilde, não tinha portão e estava toda trincada. Tentei tocar a campainha, mas não tive resposta, ouvia uma música muito alta vindo de dentro da casa e talvez ela não tivesse ouvido a campainha por causa da música, a porta estava trancada. Contornei a casa por um corredor e vi que nos fundos a porta estava aberta. Entrei, a porta dava na cozinha. A casa por dentro era muito velha e estava caindo aos pedaços, tinha pratos e copos quebrados por todos os lados, os armários estavam todos abertos, estava uma verdadeira bagunça. A música começou a ficar mais alta e percebi que vinha de um dos quartos, pude identificá-la, era a Nona Sinfonia de Beethoven.

Fui-me aproximando do local, até que dei com a porta do quarto fechada. A Música estava em uma altura ensurdecedora. Decidi abrir a porta e ao cruzá-la, era como se tivesse entrado em outra dimensão. Havia estabelecido um marco em minha vida: tudo o que eu havia vivido antes de atravessar a porta, e o que eu viria a viver após atravessá-la. Minha vista tornou-se turva, não sei mais se estava lúcido ou delirando, mas podia apenas ver aquele sorriso melancólico de Eduarda, seus olhos, mas do que nunca frios e sem vida, me olhavam incriminando-me, como quem diz “se a carapuça servir?”. Seu corpo levitava no ar, de repente, a imagem borrou, fechei os olhos e senti-me no céu. Era carregado nos braços de Eduarda, que agora tinha longos cabelos loiros e reluzentes, suas manchas e imperfeições haviam desaparecido. Tinha uma expressão serena e tranqüila, pela primeira vez senti-a feliz e em paz consigo mesma, não por que havia perdido a sua feiúra, mas sim por que se sentia realizada. Ambos trocamos sorrisos.

Acordei muito confuso, havia desmaiado no quarto de Eduarda. Era fato, ela havia cometido suicídio. Seu corpo ainda planava no ar, preso por uma corda. Chamei por socorro. No dia seguinte, realizou-se o seu enterro. Haviam quatro pessoas apenas.O padre, eu, um senhor e uma senhora que choravam desconsolados. Esse acontecimento iria me acompanhar por toda a vida. Quem sabe se eu tivesse falado com ela antes, ela mudasse de idéia. Via-me como um assassino, era culpado. A cerimônia durou pouco, o padre disse poucas palavras, ninguém mais se pronunciou. Joguei algumas flores sobre o caixão, e pensei ter ouvido um obrigado em voz baixa. Quem sabe eu realmente tenha ouvido.

No dia seguinte na escola, ninguém havia percebido a falta de Eduarda, a escola não comentou nada, tudo continuou normalmente, como se nada tivesse acontecido. As pessoas riam, se divertiam, conversavam umas com as outras. Mas eu sentia a falta que fazia aquela garota, que sentava sempre no fundo, encostada na parede, a contemplar a ponta do nariz.

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