segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

O CÉU ERA UM INFERNO


Por MMendes

Era tarde da noite. Aquele juiz havia trabalhado o dia inteiro. Foram várias audiências, inúmeros processos despachados, atendeu advogados. Tinha olhar exausto. Sob a luz da luminária analisava detalhadamente um dos processos que estavam sobre a mesa.
Esse serviço de julgar os casos, analisar os processos é mesmo demorado. Não se resume apenas a redigir a sentença. É preciso ater-se aos autos, desenrolar o conteúdo das petições, nem sempre de fácil leitura. Observar cada um dos documentos, sopesar os fatos, os depoimentos das testemunhas,consultar livros em busca de respostas. Só depois de muito esforço, uma fagulha acende as idéias e o direito começa a clarear e movimentar a balança. Vai sendo prolatada a sentença com o peso da caneta do poder, abrandado pelo coração humano do julgador, para que não seja nem mais nem menos, apenas o justo.

O serviço da jurisdição era grande. A máquina judicial movia-se com dificuldade e naquele dia o combustível do juiz estava acabando. Era preciso reabastecer-se com um bom sono. Aquele magistrado de meia idade era honesto e responsável, não queria deixar o serviço para o outro dia. Por um instante desanimou e amaldiçoou a vida. Falou lá com seus botões:

- Prefiro morrer a continuar vivendo carregando o fardo desses processos sobre os ombros.

Sem se aperceber, reclinou a cabeça nos braços cruzados sobre a mesa e cerrou os olhos apagando a luz da sala. A realidade foi se distanciando, os ruídos iam diminuindo, como se o sono tivesse a capacidade de girar o botão do volume do ouvido. E assim, aquele homem conseguiu cruzar a fronteira entre a realidade e o sonho. Cruzar essa linha é como ultrapassar uma cortina e caminhar com passos perdidos na ante-sala de um novo mundo, deixando a realidade cada vez mais para trás. Nos aprofundamos numa nevoa escura como a noite, até que uma luz virtual se acende paulatinamente, revelando o maravilho mundo dos sonhos.

Chegando lá, o magistrado viu um dia ensolarado. Um cenário surreal digno de um artista. Jardins a se perder de vista, anjos voando por um céu de várias cores, um verdadeiro arco-iris. Logo que foi chegando, dois anjos vieram recebê-lo dizendo:

- Seja bem vindo! Nosso Senhor o espera.

Lá na linha do horizonte podia-se ver uma enorme construção, um palácio majestoso com algumas colunas delineando o pórtico principal, onde lia-se: “A Justiça é Triunfante”.
Cruzando a porta principal viu anjos trabalhando. Almas recém chegadas aguardavam atendimento. Umas apoiavam os cotovelos sobre um balcão, outras sentadas, esperavam apregoamento. Curiosamente havia alguns anjos decaídos, vestidos de terno preto e gravata vermelha. Conversavam com as almas recém-chegadas dando orientações de como proceder diante do Dele.

Depois de passar por inúmeras portas e cruzar diversos corredores, o magistrado deparou-se com uma grande porta branca com uma placa indicativa:”Gabinete de Deus”. Estava um tanto apreensivo. Afinal, estaria frente a frente com o supremo juiz da mais alta côrte. Aquele que tem a decisão final sobre todas as coisas, da qual não cabe qualquer recurso, seja terreno ou espiritual.

O gabinete possuía uma mesa cheia de processos. Eram tantos processos que Deus se escondia atrás do monte. Ao chegar, Deus levantou-se abrindo um largo sorriso de contentamento, estendeu os braços para recepcionar-lo, dizendo:

- Que bom que chegou. Aguardava ansioso. Sei que é um homem honesto, justo e bom de coração. Há milhares de anos não tenho férias e os processos só aumentaram. A cada conflito, morticídio e pestilências na terra, um caos se instaura no fórum do céu. Não há pauta para tantos casos e a máquina judiciária celeste está emperrada. Preciso de ajuda. Por isso te convoquei como auxiliar, a fim de que eu possa gozar de um merecido descanso.

Depois de proferir as explicações, abriu uma porta do anexo ao gabinete. Havia corredores de prateleiras sem fim, abarrotadas de processos. Eram os processos da humanidade que pendiam de análise e julgamento. O coração do magistrado terreno congelou. Um arrepio percorreu-lhe a espinha dorsal e o suor frio escorreu de sua testa. Suas mãos estavam trêmulas. Repentinamente, seus olhos em fuga rasgaram o véu do mundo dos sonhos e o juiz acordou ofegante. “- Era apenas um sonho ou melhor, um pesadelo.” Não eram tantos processos que estavam sob sua responsabilidade. E assim, suspirando aliviado, continuou seu trabalho até o fim.

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