segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Os invisíveis


OS INVISÍVEIS

*MMendes

A vida de Gracinha não era fácil. Seus pais morreram em condições um tanto misteriosas deixando a mocinha com seu filho pequeno. Para criar o filho de quatro anos trabalhava o dia todo e como não tinha dinheiro para pagar uma babá, nem parentes que pudessem ficar com a criança, o menino ficava mesmo era sozinho em casa durante o dia todo. Mas, e os riscos dessa criança se envolver num acidente doméstico, como iria alimentar-se, tomar banho e tudo o mais? Gracinha não tinha tempo para pensar nisso, pois precisava sobreviver a qualquer custo. Estava deprimida, sentia-se abandonada e solitária. A esperança era uma chama quase apagada. Seu futuro se esvaía pelos vãos dos dedos como areia. A vida não tinha muito sentido.

Pedrinho, seu filho, ao contrário da mãe, era um menino feliz, muito feliz. Embora contasse com pouca idade, mesmo com todos os problemas, estava se saindo muito bem. Quando Gracinha saia para o trabalho deixava Pedrinho dormindo. Curiosamente quando Gracinha voltava no final do dia, a casa estava limpa e arrumada. Pedrinho dizia que já tinha tomado banho e se alimentado. Normalmente o menino estava sentado no chão brincando sozinho. Isso despertou a atenção de Gracinha.

- Pedrinho, meu filho, a mamãe fica o dia todo fora trabalhando, como você consegue se virar sozinho com apenas quatro aninhos de idade?

- Ah, mamãe, as pessoas me ajudam o tempo todo.

- Quem, se somos sozinhos nesse mundo?

O menino deu um sorrisinho para mamãe e foi brincar. Sentadinho no chão brincava com seus joguinhos e conversava com seus amigos invisíveis.

- Vem mamãe, vem brincar com a gente!

Mas Gracinha não tinha ânimo para brincar.

Um dia Gracinha foi demitida. Se a coisa estava ruim, agora desempregada ficou muito pior. Como iria sustentar o filho e pagar as contas? Estava desesperada.

A moça chegou em casa esgotada, cansada, desesperançada, deprimida. Deitou no sofá e sem perceber dormiu. Só acordou no dia seguinte. Para seu espanto a cama do filho estava arrumada, a casa completamente limpa, a roupa suja estava batendo na máquina de lavar e o café da manhã estava na mesa.

- Pedrinho, como você conseguiu fazer tudo isso sozinho meu filho? Como foi comprar pão na padaria? E com que dinheiro pagou?

- Ah, mamãe. Meus amigos me ajudam o tempo todo.

Mas para Gracinha a vida não tinha nenhuma graça. Tomou o café da manhã e voltou a dormir. Quando acordou o almoço estava na mesa e a roupa lavada estava secando no varal. Nem o pijama a moça tirou naquele dia.

No jardim dos fundos, Pedrinho parecia conversar com algumas pessoas, mas não havia ninguém ali. O menino corria pelo jardim dando gargalhadas.

- Vem mamãe! Vem brincar com a gente.

- Devem ser os tais amigos invisíveis de Pedrinho! Pensou Gracinha.

Essa estória de amigos invisíveis começou a preocupar a moça, que resolver levar o filho no atendimento gratuito ao público do setor da faculdade de psicologia. Achava que tinha alguma coisa errada com a criança. Depois de esperar uma infinidade de horas para ser atendida, conseguiu finalmente uma consulta para o filho.

Depois de uma entrevista com Gracinha, que explicou que o filho estava tendo um comportamento misterioso e além disso estava dizendo que recebia ajuda de pessoas, que na verdade eram invisíveis, a psicóloga chamou a criança para outra sala e alí ficaram um bom tempo. Depois a profissional abriu a porta e convidou a mãe para entrar novamente.

- Como vão os avós de Pedrinho? Perguntou a psicóloga.

- Eles morreram. Respondeu Gracinha.

- Sabe os amigos invisíveis de Pedrinho? São os avós falecidos.

- Sabe doutora, acho que ele não aceitou a morte dos avós. Ele não chorou, não sofreu.

- E você Gracinha, como está nessa situação?

- Doutora, meus pais morreram no mesmo dia em condições misteriosas. Não sei direito o que aconteceu. Quando percebi estavam mortos. Me deixaram abandonada. Não tenho condições de cuidar do meu filho. Estou enlouquecendo e acho que meu filho também.

- Acho melhor tratarmos você primeiro, Gracinha. Deixemos o Pedrinho para depois. O que você acha?

A moça aceitou o convite da psicóloga. Durante o tratamento, Gracinha acessou uma parte das memórias reprimidas, coisas que não queria lembrar, pois eram duras lembranças. E durante a sessão com a psicóloga entrou em choque, ao descobrir que foi ela própria quem havia matado seus pais, depois de uma severa discussão em casa. Gracinha caiu num choro sem fim e não conseguia se acalmar. A psicóloga precisou chamar o Psiquiatra de plantão para ministrar-lhe um calmante. Gracinha passou horas praticamente sedada, deitada na cama da enfermaria. Acordou aflita a procura do filho. Levantou-se apressadamente, abriu a porta do quarto da ala do hospital universitário e deparou-se com Pedrinho sentado logo ali perto da porta, balançando as perninhas, banho tomado, cabelinho penteado, arrumado, calçado com meia e tênis. Quando viu a mãe deu um sorriso, saltou da cadeira e correu para um abraço.

- Você está bem mamãe? Eu a vovó e o vovô estávamos preocupados!

Gracinha olhou em volta, mas não viu ninguém. Pedrinho estava sozinho.

- Meu querido, o vovô e a vovó não estão mais aqui. Eles estão mortos.

- Não estão não, mamãe. Eles estão sempre aqui comigo, me ajudando, me cuidando, brincando comigo.

Ouvindo as palavras do filho e sabendo a verdade, Gracinha abraçou-o apertado e começou a chorar de soluços. Afinal, quem de fato estaria enlouquecendo?

Pedrinho pegou na mão de sua mãe e a levou até a cadeira onde estava sentado, enquanto a psicóloga e o psiquiatra ficaram olhando os dois a distância.

- Mamãe, venha comigo. Sente-se aqui e feche seus olhos. Respire fundo e creia, o vovô e a vovó estão aqui do seu lado. Então Gracinha olhou para o psiquiatra e para a psicóloga que assentiram com a cabeça. Fechou os olhos, respirou fundo segurando a mãozinha de Pedrinho. Fez-se um profundo silêncio. Depois começou escutar uma voz muito fraquinha, muito distante, cuja intensidade foi amentando aos poucos. A voz dizia:

- Filha? Filha? Abra os olhos, eu estou aqui. Olhe para mim.

- Parece a voz de meu pai. Pensava Gracinha.

Uma outra voz, também fraquinha, se fazia ouvir muito distante.

- Filha? Filha? Abra os olhos, nós estamos aqui. Volte para nós.

- Parece a voz de minha mãe. Pensava Gracinha. Mas Gracinha recusava-se a abrir os olhos, pois estava com medo. Afinal, se tinha matado os pais, teriam vindo os espíritos deles atormentar-lhe? Ou haveriam de denunciar o crime cometido? O que se pode esperar de almas penadas?

E as vozes continuaram a chamar Gracinha, que permanecia imóvel com os olhos fechados, até que sentiu o toque das delicadinhas mãos de Pedrinho.

- Abra os olhos mamãe. Estamos todos aqui.

Quando Gracinha abriu os olhos e viu o espírito de seu pai e de sua mãe, caiu aos prantos, pois se arrependia de tê-los matado. Seu pai se aproximou e afagou seus os cabelos, sua mãe a abraçou enquanto Pedrinho abraçava todos eles de uma só vez.

- Estamos aqui minha filha, não sofra assim. Olhe para nós, somos de carne e osso. Sempre estivemos perto de você. Agora podemos voltar para casa. Você é nossa filha amada.

Por causa daquela severa discussão com os pais, daquele dia em diante o ódio contra os pais penetrou no coração de Gracinha. A moça matou seus pais no coração. Saia e voltava de casa sem dizer uma só palavra, nem se importava mais com os pais. Aos poucos sua mente foi apagando seus pais de sua vida, até o ponto que não pode mais vê-los nem ouvi-los.

Pedrinho foi o portador da esperança, a ponte que religou Gracinha aos pais. Saíram dos hospital e voltaram para casa, afim de recomeçarem a vida em família.

Não temam quem possa roubar-lhe os bens, senão aquele que pode roubar o sentido da vida, que é a vontade de viver. O ódio cega nossos olhos e destrói os laços que nos une, roubando nosso bem mais precioso, que é o respeito e o perdão. Só vê bem que vê com o coração. Um coração puro como de uma criança, um coração capaz de perdoar. Todos nós já tivemos um coração assim um dia, mas muitas pessoas avançam para o futuro esquecendo a pureza da criança no passado. O perdão é o milagre de compreender e aceitar o outro, permitindo que o amor, depois de humilhado e maltratado, possa ressuscitar. As boas lembranças são o balsamo que purifica nossos olhos, permitindo que o amor recebido no passado perdoe os erros cometidos do presente. Amar e ser amado é o que dá sentido à nossa vida. Lembrar que fomos amados nos leva a perdoar as possíveis ofensas de quem verdadeiramente nos ama. A vida não tem sentido se nos esquecermos daqueles que fazem parte da nossa história, da nossa vida. É preciso acordar em tempo. Quantos dias ainda nos resta sobre a Terra? A única certeza é que só temos hoje, só temos o agora para amar. Então não pense duas vezes, não deixe a esperança da reconciliação ser levada pela morte. Faça a experiência do perdão e do amor em vida e plante a felicidade no teu ser.