segunda-feira, 11 de outubro de 2010

CONFLITO DE GERAÇÕES


CONFLITO DE GERAÇÕES

Por Guilherme Benvenuto Mendes

Cecília estava decidida. Iria à festa de Veneza, aonde todos os jovens da cidade se encontravam. Fazia bastante calor e as luzes do salão enchiam de cor a noite escura. Cecília colocou um salto bem alto, passou um batom vermelho, soltou os cabelos. Colocou um belo vestido roxo, sensual, apertado e com um decote arrepiante. Ela iria arrasar, se não fosse por um problema: ela já tinha mais de 60 anos.

Ao chegar na festa, endireitou a coluna, curvada pelos anos, caprichou no rebolado, verificou se a dentadura estava bem presa e entrou com toda a pompa. Com um olhar de lince, prejudicado pela catarata, caçou um grupo de jovens. Iria se enturmar e provar ainda ser jovem.

- E ai galera, “firmoze”? Festa “supimpa” heim?

Alguns jovens riram, outros acharam ridículo. Um rapaz resolveu dar uma lição na velhinha. Convidou-a para dançar. Era uma típica música de “funk”. Ele iniciou com todo o molejo. Cecília tentou copiar. Entre um requebrado e outro ela ora tirava a coluna do lugar, ora colocava-a de volta. Terminou sentada no chão. Atirou os saltos para longe por já não aguentar mais.

- Volta pro asilo vovó. Você é ridícula. Se liga!

Decepcionada consigo mesma, ela senta em uma mesa e pede ao garçom um copo de “vodka” para tomar junto com seu remédio para labirintite. Ela acaba por cochilar e é acordada por várias risadas. Amargurada olha para si mesma e se sente ridícula. Um senhor calvo, de terno colorido se aproxima dela:

- Ao que me parece entramos na mesma furada. Vamos resolver isso juntos? Aceita uma contradança?

Em meio ao som ensurdecedor, uma algazarra musical de estourar os tímpanos de um surdo, os jovens se esfregavam nas moças enquanto elas vulgarmente insinuavam suas formas femininas. Os dois ocupam o centro do salão e dançaram uma tradicional valsa. Ignoram o ritmo da música, as risadas e os comentários. Enquanto dançam, ele canta em seus ouvidos “que c´est triste venise”, “quando as pessoas não se amam mais”.

Satisfeitos consigo mesmos, passam a achar os jovens ridículos. Embriagados, em uma dança de puro erotismo, sem amor. Sentiram saudades da época em que haviam valores e o amor estava no ar. Saem do salão felizes por serem que são e por terem vivido em sua época.


MENDIGOS DA VIDA


MENDIGOS DA VIDA

* Por MMendes

Num outro dia, passando por um acampamento de sem-terras indígenas, do outro lado da estrada vi umas crianças jogando futebol. Meninos e meninas brincavam correndo atrás da bola, num campo de terra improvisado. Quem poderia imaginar essa situação? Os índios que já foram os possuidores de todo o continente, hoje mendigam um pedaço de terra.

Distanciei-me um pouco daquele lugar. Mais a frente uma voz sussurrou em meu ouvido:

- Lembre-se das crianças! Pensei naquelas crianças kaiowas jogando futebol no campo de terra, correndo com os pés descalços.

- Lembre-se das crianças! Ouvi novamente. Pensei nas crianças que conhecia: os filhos do vizinho, meus sobrinhos e nos filhos de meus amigos.

- Lembre-se das crianças! O interlocutor utilizava a frase como mantra. Dessa vez mergulhei mais fundo. Lembrei que eu já fui uma criança e que todos os que vivem e já viveram são ou foram crianças um dia.

- Elas não querem ir para casa, porque estão brincando com o espírito que paira sobre as águas.

Nesse exato momento, uma imagem projetou-se sobre minha tela mental e vi uma névoa branca sobre um grande lago de águas densas e profundas. As crianças corriam ao redor do lago, gargalhando e atirando coisas na água. Estava anoitecendo e não queriam voltar para casa. As mães as chamavam insistentemente, mas as crianças não se importavam. Senti medo de que caísse a noite e elas não soubessem o caminho de volta. Então meu interlocutor continuou:

- A humanidade é como uma criança, ingênua, irresponsável, brincando com a vida. O lago é a origem e fonte da vida. O espírito que paira sobre as águas é a vida tão singular no universo. A voz da mãe clamando os filhos de volta é a natureza chamando o homem para que reconheça o planeta como sua casa. É preciso ouvir seus apelos, voltar para casa, crescer e tornar-se responsável. A noite se aproxima e ameaça toda a existência.

- Eu já lhe disse que vida é movimento (*leia o conto a vida é movimento). Você se recorda? Aquele estado mental me permitiu alcançar uma compreensão sobre a vida como nunca aconteceu antes. Eu vi a terra e as placas tectônicas movendo-se sobre o magma incandescente. Eu vi a terra viva! E a voz continuou:

- O planeta é um ser vivo. O espírito da vida habita seu interior desde a criação. Já se manifestou com muita força na consciência de muitos seres terrenos. Assim como não reconhecem a terra como um ser vivo, não reconhecem aqueles que recebem seu espírito. Assim como destroem a terra, também destruíram aqueles que encarnaram seu espírito. Quando matarem a terra, se tornarão mendigos da vida.

Dito isso, a voz se foi e minha consciência se recolheu novamente, voltando ao estado normal. Bem, já nem sei mais o que é real e nem o que é normal. Naquele estado de consciência expandida alcançamos conhecimentos extraordinários. Mas, afinal, aquela experiência havia sido verdadeira no plano da realidade? Para mim foi real e mudou minha maneira de ver a vida. Nós, habitantes da Terra que hoje produz vida com tanta abundância, haveríamos no futuro próximo de mendigar por água limpa, por florestas, pela sobrevivência?


A VIDA É MOVIMENTO


A VIDA É MOVIMENTO

- Preste atenção em todos os movimentos. Disse-me a voz.

Olhei para o volante do carro e percebi que o movimentava levemente ao tempo em que afundava o pé no acelerador. Percebi o carro em movimento, olhei para frente e vi outros carros em movimento. Em seguida fui arrebatado e conduzido para um estado mental extraordinário, que facilitava meu deslocamento no espaço.

Ao ingressar no mato que delineava a estrada vi insetos voando, as folhas dos eucaliptos balançavam. O vento sacudia as moitas de capim. Em seguida deslocou minha visão e vi os insetos que moviam-se por debaixo da terra, as bactérias. Me aprofundou um pouco mais e vi o magma em movimento, as placas tectônicas, as mares e o movimento dos rios, seus peixes nadando. Levou-me à superfície e vi o pó da estrada sendo levado pelo vento, a chuva que caia, as nuvens que se embolavam no céu. Voando até o alto, ví o vento solar lambendo a estratosfera da terra, a luz emitida pelo sol se espalhando pelo universo, o movimento dos planetas, rotação, translação, revolução, o movimento das galáxias. Para dentro da matéria vi os átomos em movimento, o pensamento em movimento, os sentimentos, o tempo em movimento, etc. Meu espírito se encheu de espanto e exclamei:

- Não há nada que exista que esteja parado, tudo está em movimento!

- A vida é movimento. Continuou a voz.

- Até o grão de areia que o vento levava? Perguntei.

- Sim, até o grão de areia levado ao vento. Respondeu.

- Deus criou tudo o que existe. Ele é quem colocou tudo em movimento, o motor primeiro. Deus se pôs em movimento e colocou vida em tudo o que existe. A vida é movimento. Tudo que se move está vivo, carregando a vida que o Criador lhe deu.

Voltei para a estrada, ainda estava no banco do motorista dirigindo meu carro. A voz silenciou-se e minha mente começou a debulhar tudo aquilo. Meus sentidos estavam aguçados, sentia o coração bater, a respiração, os menores movimentos que me eram permitidos perceber. Acho que percebia até mesmo o sangue fluir e as células se moverem. Sentia a vida que me rodeava. Via a vida em movimento, ao mesmo tempo que o movimento a tudo transformava, retirava do lugar, modificava.

- Vida é transformação. Continuou ela a me falar.

Não era uma voz externa, mas uma voz interna. O mais engraçado é que a voz parecia sempre vir do lado, como se o locutor estivesse à minha direita.

- O quanto de vida você coloca em tudo o que faz?

Naquela dimensão mental uma simples pergunta era de profunda complexidade. O quanto eu era capaz de transformar a realidade? O quanto eu colocava de vida no trabalho, em casa, na relação com os outros?

Como, sob sujeição da vida e de seu movimento, eu poderia ser movimento novo para essa mesma realidade? Como eu poderia alterar a realidade se sou conduzido pela própria realidade que me cerca e não condutor dela?

Sentia-me insignificante diante da grandeza da vida e do poder que exercia sobre meus sentimentos e pensamentos. Silenciei-me, precisava pensar a respeito.


O SENTIDO DA VIDA


O SENTIDO DA VIDA

*Por Marco Mendes

Dirigia sozinho meu carro distraído pela estrada. Depois de um tempo, próximo da cidade de Rio Brilhante, com o olhar perdido nas paralelas da rodovia, ele assoprou uma pergunta em meu ouvido direito:

- Você sabe qual é o sentido da vida?

- Ainda não. Respondi.

Refleti um instante. Afinal, quem conversava comigo? Não havia ninguém ali, o rádio estava desligado. Minha percepção aguçou-se de modo que nada escaparia aos meus sentidos. De repente tudo ficou mais colorido e as formas adquiriram muito mais plasticidade. Embora tudo estivesse em movimento, o tempo parecia quase parado. Olhei para o relógio de pulso, o ponteiro dos segundos se seguravam como querendo contemplar cada instante. Um silêncio calou fundo por instantes, anunciando o que estava para acontecer. Então ele continuou a me dizer:

- Pois então hoje eu vou te contar.

- O que você era ante de nascer?

- Nada! Disse eu.

- O que você vai ser depois que morrer? Prosseguiu.

- Pó! Contra argumentei.

- O que os passarinhos fazem?

Nessa pergunta ele me pegou desprevenido. Não sabia qual era a resposta. -Voavam? Gorjeavam? Sei lá?

- Passarinho faz passarinho! Ele próprio respondeu.

- O que os cachorrinhos fazem?

A pergunta parecia tola, mas sua voz era doce e suave me seduziu a entrar na brincadeira.

- Cachorrinho faz cachorrinho! Respondi aceitando a provocação.

- Muito bem! Eis ai o sentido da vida.

- Não entendi nada. Respondi perplexo e confuso. Aquela conversa parecia desconexa, um emaranhado de loucuras, como poderia estar ali o sentido da vida? Ah! Se eu soubesse o sentido da vida. Quem sabe poderia dar sentido à essa vida louca de compromissos sem fim, de sofreguidão, de esforço interminável, de desamor a brotar nas esquinas das ruas da cidade.

- Então eu vou lhe explicar. Prosseguiu meu acompanhante, como pai ensinando um bebê.

- Se você não era nada antes de nascer e será pó depois que morrer, deveria entender que “tu és pó e ao pó tornarás”. Proteger a própria vida é inútil, porque fatalmente morrerá. Assim a vida só tem sentido se for capaz de produzir vida. Vida que não gera vida nova se extingue como a chama da vela que chega ao fim. É preciso transmitir a chama da vida para que não se apague. E quão triste é a escuridão.

- “Crescei e multiplicai-vos”! Sentido da vida.

- Eu não estou falando apenas da multiplicação biológica da vida. Eu estou falando da vida em todos os sentidos.

- “Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância”. Sentido da vida. Ao nascermos assumimos o compromisso de sermos fecundos. Mas, só quem conhece o sentido da vida é que recebe o dom da vida, capaz de multiplicar a vida em tudo o que toca.

- Olhe para o futuro e veja a vida que ainda não brotou, as crianças que ainda não nasceram, as sementes que ainda não caíram, as árvores que ainda não cresceram. Olhe para frente, para o fim da estrada, é preciso assegurar o direito à vida das gerações futuras.

- A vida é a única coisa importante. A vida em si, não a sua vida, não a vida do outro, mas a vida enquanto chama que pulsa, enquanto luz que ilumina. O sentido da vida é fazer vida nova, pois a vida que não se multiplica não serve pra nada e está fadada a morte. “Aquele que tentar proteger a própria vida morrerá, mas aquele que der a vida pelo outro viverá eternamente”. Eis aqui o sentido da vida e o segredo da vida eterna.

Disse-me todas essas coisas e retirou-se. Deixou o silêncio e lágrimas em meu rosto. O quê ou quem era a voz? Seria minha própria consciência? De onde teriam saído maravilhosos ensinamentos? Como poderia ser eu o mestre e o aluno ao mesmo tempo?

Retomei os sentidos, ainda estava dirigindo meu carro. Não me lembro da estrada durante a conversa. Segui viagem enquanto repassava tudo aquilo como se não quisesse perder uma só gota daquela sabedoria, que caia sobre meu espírito como um orvalho refrescante sobre o solo seco e castigado.

O violão

O VIOLÃO
* Por MMendes



Os dedos deslizavam sobre os trastes em arpejos elegantes. Retiravam das seis cordas centenas de sons, capazes de cravejar a alma de notas musicais. Manejavam os ouvidos. Conduziam o pensamento a coloridas dimensões sonoras. A luz focava as mãos, mas as cordas é que encantavam. A melodia parecia hipnotizar o instrumentista que só tinha olhos para o instrumento. Com seu olhar vidrado e trejeitos frenéticos, alternava expressões de gozo e de dor, como se o instrumento o possuísse.

A platéia assistia aquele encantamento, também encantada. Não havia outro som além do violão. Sentado no banquinho sob a forte luz, o artista coloria o palco. A penumbra cobria os expectadores como um véu de noite. Apenas a luz do palco reluzia nos olhos das pessoas. A música que parecia encantar os movimentos do artista paralisava a platéia. Curiosamente quando o artista cessou seu frenesi a platéia é que entrou em delírio:

- Bravo! Bravo! – repetiam batendo palmas sem cessar.

A música orquestrava todos os movimentos. Platéia e artista. Ela ditava a cadência daquele teatro. Na verdade a música era a alma daquele lugar. O artista em pé, apoiava o violão no chão. A cada movimento de reverência do artista o violão parecia igualmente cumprimentar a platéia.

O concerto chegou ao fim. O violão mudo devolvia autonomia ao artista. Sem a vibração das cordas parecia inofensivo. Ficou nos braços do concertista apenas fazendo companhia. As pessoas não. Saíram complemente encantadas. As pessoas levaram consigo a voz do violão. A música permanecia viva na lembrança. Melhor do que isso, aquela música misturava-se permanentemente às memórias de todos.

O concerto remodelou o ser. A música remexeu sentimentos e reorganizou idéias. Quando saíram do concerto, as pessoas se reuniram em bares e restaurantes e comemoraram a vida. O violão trancafiado em seu estojo permanecia calado. O instrumento encantador de almas era agora prisioneiro. O artista estava saciado por ora, até que, necessitasse de outra overdose de acordes.

Aquele frágil instrumento encordoado guardava muitos segredos. Músicas esquecidas, de sucesso, as que nunca serão ouvidas. Músicas inéditas esperando para serem descobertas pelos dedos do artista.

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O dono das almas

O DONO DAS ALMAS

* Por MMendes


Ninguém poderia sequer imaginar que aquele homenzinho era tão perigoso. Agitado, raciocínio confuso e fala complicada. Sua conversa não tinha meio, apenas início e fim. Transpirava Maquiavel, “os fins justificam os meios”. Talvez por isso aquela fundamentação desarrazoada, sem nexo. O fim de seus atos era claro e evidente, perseguir qualquer um que o contrariasse.

Sua auto-estima estava muito além de sua real estatura. Assumir o cargo foi como regar a semente do mal plantada em seu coração. Desde então o mal só cresceu. Não poupava grávidas nem enfermos. Temido desde faxineiros até juízes, seu poder atravessava os limites do inferno.

Quando a porta de sua sala se abria, sentia-se um cheiro de enxofre e via-se uma névoa densa deslizar pela fresta. Ele estava ali. A prova disso era o corre-corre de seus servos, que iam e vinham desesperados a preparar-lhe caprichos absurdos. Era o dono daquelas almas, das quais dispunha a bel prazer. Depois de possuir as almas, as guardava nas garrafas da estante de sua sala. As bebia literalmente para saciar a sede. Tinha uma coleção de garrafas, cada uma contendo uma alma dominada, engarrafada para ser consumida aos poucos, até o fim. Quando a bebida acabava, descartava a garrava e era morte na certa.

O que ele não sabia e que sua secretaria Maria, o havia enganado. Antes de entregar-se, Maria tomou um copo de um poderoso veneno. Às portas da morte vomitou sua alma na garrafa, fechou com a rolha e depositou nas mãos do seu senhor. Tão obsecado por almas, não pôde perceber que havia recebido uma alma agonizante.

O dono das almas estava frustrado porque não conseguia possuir e beber uma alma em especial, a alma de Munir. Cercou, tramou, espezinhou, puniu, tentou seduzi-lo. Munir sofreu, mas nunca se entregou. O esforço para tomar aquela alma consumiu sua energia. Recompunha-se bebendo àquelas engarrafadas disponíveis.

Munir não podia esconder-se, sabia que o dono das almas estava determinado a conseguir a sua. Certo dia, os servos zumbis do dono das almas conduziram Munir à sala do senhor, numa tentativa de violentá-lo e arrancar sua alma à força. Estando a sós por uns minutos, Munir sentou-se em frente à mesa de onde podia contemplar a coleção de garrafas. Notou que estranhamente uma delas era mais escura que as outras. Era a garrafa da alma de Maria.

Sobre a rolha depositava-se um resíduo esbranquiçado. Encostou o dedo naquela substância e levou à ponta da língua. Seu corpo estremeceu, sentiu tamanha dor como se a morte tentasse rasgar suas entranhas. O coração puro de Munir sentiu a alma de Maria clamando por justiça.

Quando o senhor das almas entrou com seu cínico sorriso, estava acompanhado de seus asseclas e carrascos. Sabia que se não entregasse sua alma, seria duramente torturado. Disse Munir que entregaria a alma, mas como último pedido, queria experimentar o gosto de uma alma engarrafada. Propôs um brinde e escolheu a garrafa de Maria. O acordo foi aceito e o dono das almas serviu dois cálices. Os cálices de cristal tocaram-se produzindo um som límpido e agudo. Em seguida foram levados concomitantemente à boca, mas Munir segurou seu cálice alguns milímetros dos lábios, pois já sabia que um só gole seria seu fim. O senhor das almas o contrário, tornou a bebida num só trago.

A alma agonizante de Maria envenenou o senhor das almas, que sufocado caminhou cambaleante derrubando as coisas de sobre a mesa, caindo contorcendo-se e gritando como louco. Morreu com os olhos esbugalhados. Após seu último suspiro, fluíram as almas ingeridas de sua boca aberta, libertas uma a uma, menos a de Maria que morreu levando consigo a vida do facínora.

O sacrifício de Maria libertou e salvou os condenados, inclusive Munir que assistiu tudo aquilo em pé, sem mover-se. As almas libertas retornaram para os corpos dos servos zumbis que retomaram a vida usurpada. Depois de cremar o senhor das almas, enterraram o corpo de Maria num caixão de vidro, no interior de um mausoléu. Seu corpo nunca se decompôs, reverenciado pelo povo daquele lugar como corpo santo incorruptível. Todo ano, na data do aniversário de sua morte, romeiros do mundo inteiro vinham visitá-la depositando flores sobre seu caixão. Curiosamente nem as flores eram capazes de se decompor. Ao contrário, criavam raízes e com o tempo aquele local transformou-se num imenso jardim. Mas, no solo onde jogaram as cinzas do dono das almas, nada mais cresceu por mil anos.