Por MMendes
A vida é uma caixa de surpresas. Deixamos de resolver os verdadeiros problemas, os da alma, ocultados no excesso de comida, bebida, cigarro, consumismo, sensualismo. Mas o cobrador um dia aparece e bate a nossa porta. Nossos olhos se abrem justamente no instante em que chega a hora de cerrá-los definitivamente. Mas o que se passa na cabeça de um homem nesse momento, no último segundo da vida? Roberto descobriu o mistério.
Um corpo franzino fenecia no leito hospitalar. Tubos e sondas entravam por suas vias respiratórias. Sua escassa energia vital era monitorada por diversos instrumentos, como que se esperassem o "bip" final para dizer: "-Se foi"! Era doença ruim, câncer de pulmão, ramificado para diversos órgãos. Era fumante inveterado, quatro ou cinco maços por dia. O ar apesar de abundante, já não conseguia penetrar em seus pulmões. Respirava com dificuldade. Uma olheira azulada delineava seus olhos castanhos, fundos e opacos. Era a expressão da morte.
Mal conseguia movimentar suas mãos. Seus olhos parados contemplavam o instante final. Dizem que nesse momento o filme de nossa vida passa diante dos olhos e rexperimentamos a vida rapidamente. Mas, não foi bem isso que ocorreu. Os parentes estavam no quarto. Uns choravam, outros contavam como a doença evoluiu rapidamente, outros buscavam se aliviar fazendo algum gracejo agradável.
Olhando para o passado, a sensação que temos é que a vida é muito curta. A física ensina que o tempo é relativo, e, é mesmo. O último segundo é um tempo especial, ali tudo corre muito lento e há tempo para tantas coisas, até para recuperar ou fazer tudo aquilo que deixamos para trás. É paradoxal, mas o segundo anterior à morte é derradeira chance de compreender o verdadeiro sentido da vida. E assim, não há quem tenha vivido em vão.
Roberto fitava a cena para gravá-la em sua lápide mental, quando todo o cenário começou esmaecer e as pessoas foram sumindo, apagando-se pouco a pouco, até que desapareceram por completo. Quando se deu conta, Roberto estava sozinho no quarto. Alguém abre a porta e uma doce mulher ingressa no recinto. Vestia roupa branca qual as enfermeiras. Seu rosto era angelical de expressões maternas, gesto suave. Seria um anjo descido do céu? Pensou Roberto. Poderia ser simplesmente efeito da dolamina que lhe aliviava as dores.
A mulher abeirou-se da cama e conversou pausadamente com Roberto:
- Como está se sentindo?
Roberto mal levantava os olhos e sem dizer nada, colocou a mão no peito dolorido. A mulher como que entendendo, disse que faria uma espécie de massagem nos pulmões, para tentar aliviar o sofrimento. Ao iniciar o procedimento, uma energia esquisita percorreu o corpo de Roberto. Um calor terrível dominou seu corpo moribundo, como se tivesse deitado em cima de todos os cigarros acesos que já havia fumado. Um suor diferente escorria pelo corpo, um líquido escuro e espesso. Toda a nicotina que seu organismo absorvera durante a vida, deixava seu corpo num só instante. Sua boca exalava muita fumaça. O quarto ficou todo enevoado, mal se via um palmo a frente. A mulher, delicadamente foi até a parede lateral e levantou a janela de correr. A fumaça se esvaiu pela abertura, tragada rapidamente, limpando todo o ambiente. Uma brisa fresca balançava a fina cortina branca e um aroma de rosas tomou conta do quarto.
A mulher passou por Roberto e sorriu. Dirigiu-se até o banheiro e voltou com uma vasilha com água e um pequeno pedaço de pano. Umedeceu o pano e delicadamente limpou a nicotina que recobria o corpo de Roberto.
A cada deslizar do pano, um alívio. Milagrosamente cada escara e ferimento foram cicatrizando. Sentiu um vigor de moço, abriu um largo sorriso em agradecimento, enquanto seus olhos exclamavam admirável espanto.
Não deu nem tempo de dizer uma só palavra e aquela mulher levantando a mão direita encostou o indicador em sua testa. O corpo de Roberto parecia ter entrado em convulsão e depois paralisou em transe. Agora sim, toda sua vida, todos os momentos passaram por sua tela mental, reavivando as alegrias, felicidades, dores e sofrimentos que experimentara no passado. Curiosamente as lembranças ruins depois de experimentadas apagavam-se da memória, enquanto que as boas lembranças permaneciam vívidas.
Ele estava em êxtase profundo, algo que só experimentou quando era criança, quiçá recém-nascido. Dizem os antigos que o recém-nascido sorri quando vê um anjo. Todo mal estava desfeito... Todo sofrimento apagado... Toda lágrima enxugada. A sensação era de que havia tomado um banho de corpo e alma. Uma energia vibrante pulsava em sua mente e o preenchia. Sua vontade era gritar de alegria. Sentiu desejo de viver eternamente. A vida era maravilhosa.
De tanto exultar cansou-se e com seu corpo franzino acomodou-se no colo materno daquela mulher de branco, adormecendo suavemente em uma posição fetal.
Depois de uns minutos, o médico anunciou pesarosamente:
- Ele descansou em paz.
Roberto tinha um leve sorriso no rosto, o mesmo dos recém-nascidos quando vêem um anjo passar.
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