segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

O CÉU ERA UM INFERNO


Por MMendes

Era tarde da noite. Aquele juiz havia trabalhado o dia inteiro. Foram várias audiências, inúmeros processos despachados, atendeu advogados. Tinha olhar exausto. Sob a luz da luminária analisava detalhadamente um dos processos que estavam sobre a mesa.
Esse serviço de julgar os casos, analisar os processos é mesmo demorado. Não se resume apenas a redigir a sentença. É preciso ater-se aos autos, desenrolar o conteúdo das petições, nem sempre de fácil leitura. Observar cada um dos documentos, sopesar os fatos, os depoimentos das testemunhas,consultar livros em busca de respostas. Só depois de muito esforço, uma fagulha acende as idéias e o direito começa a clarear e movimentar a balança. Vai sendo prolatada a sentença com o peso da caneta do poder, abrandado pelo coração humano do julgador, para que não seja nem mais nem menos, apenas o justo.

O serviço da jurisdição era grande. A máquina judicial movia-se com dificuldade e naquele dia o combustível do juiz estava acabando. Era preciso reabastecer-se com um bom sono. Aquele magistrado de meia idade era honesto e responsável, não queria deixar o serviço para o outro dia. Por um instante desanimou e amaldiçoou a vida. Falou lá com seus botões:

- Prefiro morrer a continuar vivendo carregando o fardo desses processos sobre os ombros.

Sem se aperceber, reclinou a cabeça nos braços cruzados sobre a mesa e cerrou os olhos apagando a luz da sala. A realidade foi se distanciando, os ruídos iam diminuindo, como se o sono tivesse a capacidade de girar o botão do volume do ouvido. E assim, aquele homem conseguiu cruzar a fronteira entre a realidade e o sonho. Cruzar essa linha é como ultrapassar uma cortina e caminhar com passos perdidos na ante-sala de um novo mundo, deixando a realidade cada vez mais para trás. Nos aprofundamos numa nevoa escura como a noite, até que uma luz virtual se acende paulatinamente, revelando o maravilho mundo dos sonhos.

Chegando lá, o magistrado viu um dia ensolarado. Um cenário surreal digno de um artista. Jardins a se perder de vista, anjos voando por um céu de várias cores, um verdadeiro arco-iris. Logo que foi chegando, dois anjos vieram recebê-lo dizendo:

- Seja bem vindo! Nosso Senhor o espera.

Lá na linha do horizonte podia-se ver uma enorme construção, um palácio majestoso com algumas colunas delineando o pórtico principal, onde lia-se: “A Justiça é Triunfante”.
Cruzando a porta principal viu anjos trabalhando. Almas recém chegadas aguardavam atendimento. Umas apoiavam os cotovelos sobre um balcão, outras sentadas, esperavam apregoamento. Curiosamente havia alguns anjos decaídos, vestidos de terno preto e gravata vermelha. Conversavam com as almas recém-chegadas dando orientações de como proceder diante do Dele.

Depois de passar por inúmeras portas e cruzar diversos corredores, o magistrado deparou-se com uma grande porta branca com uma placa indicativa:”Gabinete de Deus”. Estava um tanto apreensivo. Afinal, estaria frente a frente com o supremo juiz da mais alta côrte. Aquele que tem a decisão final sobre todas as coisas, da qual não cabe qualquer recurso, seja terreno ou espiritual.

O gabinete possuía uma mesa cheia de processos. Eram tantos processos que Deus se escondia atrás do monte. Ao chegar, Deus levantou-se abrindo um largo sorriso de contentamento, estendeu os braços para recepcionar-lo, dizendo:

- Que bom que chegou. Aguardava ansioso. Sei que é um homem honesto, justo e bom de coração. Há milhares de anos não tenho férias e os processos só aumentaram. A cada conflito, morticídio e pestilências na terra, um caos se instaura no fórum do céu. Não há pauta para tantos casos e a máquina judiciária celeste está emperrada. Preciso de ajuda. Por isso te convoquei como auxiliar, a fim de que eu possa gozar de um merecido descanso.

Depois de proferir as explicações, abriu uma porta do anexo ao gabinete. Havia corredores de prateleiras sem fim, abarrotadas de processos. Eram os processos da humanidade que pendiam de análise e julgamento. O coração do magistrado terreno congelou. Um arrepio percorreu-lhe a espinha dorsal e o suor frio escorreu de sua testa. Suas mãos estavam trêmulas. Repentinamente, seus olhos em fuga rasgaram o véu do mundo dos sonhos e o juiz acordou ofegante. “- Era apenas um sonho ou melhor, um pesadelo.” Não eram tantos processos que estavam sob sua responsabilidade. E assim, suspirando aliviado, continuou seu trabalho até o fim.

A CONCILIAÇÃO


Por MMendes

Iniciada a audiência, foram apregoadas as partes. Adentraram a autora e o reclamado, que sentaram-se à mesa passando a fitar o Juiz. O juiz passou a relatar o litígio, tornando pública a querela.

A autora, alegando estar trabalhando para o reclamado, pretendia ver declarado o vínculo empregatício com o pagamento das verbas contratuais. O réu, um desafortunado farmacêutico, contestava rubrica por rubrica. O juiz percebeu que os litigantes não se olhavam e cada qual permanecia impávido, vazios de emoção.

Buscando a conciliação, perguntou às partes se havia possibilidade de acordo. Foi então, que para sua surpresa, soube que eram mãe e filho. Asseverou à mãe:

- Como podes litigar com tua própria carne, levando teu filho às barras de um Tribunal?

Ao mesmo tempo, voltando-se para o filho disse:

- O que esperas? Perguntes logo à tua mãe o que que ela quer para por fim ao litígio. Afinal de contas, deves a ela a própria vida.

Continuou o Juiz:

- Como podeis esperar de mim a composição, se a semente da discórdia provém de vossos corações?

O filho atendendo aos apelos do juiz, perguntou à mãe o que ela queria para por fim ao litígio. A mãe com sua fisionomia carrancuda, não fitava nem o filho nem o juiz.

Antevendo as dificuldades que a causa lhe traria, com sua voz ponderada e serena, aproveitando o silêncio das partes, foi astuciosamente dizendo:

- Tu filho e reclamado, não percebes qual a verdadeira intenção de tua mãe?
Percebas tu, que ela quer na realidade somente um momento para dialogar contigo. Para que reconheças no fundo do teu coração, a ajuda que te deu em teus negócios, sem nada exigir.
Que tu, ocupado demais com teus negócios, a tratava apenas como uma simples empregada, esquecendo-te de despender o afeto que costumavas dar na infância.

O Juiz era insistente em sua proposta conciliatória e prosseguia:

- Na realidade, ela não pretende a declaração do vínculo empregatício, mas dar-te apenas uma lição, das quais somente o sábio e verdadeiro amor de uma mãe poderia ministrar.

O juiz sabia que, no fundo, essa não era a realidade aparente, mas conhecendo profundamente os mistérios do coração humano, intuía o porquê da discórdia entre mãe e filho, incitando o acordo entre as partes. Continuava o juiz:

- Vindicou ver-se reconhecida empregada para lembrar-te de que a tratas como uma mera operária, esquecendo-te de com ela dialogar, abraçá-la, beijá-la na face, gestos do carinho de um verdadeiro filho. Eu chego a imaginar que dinheiro mesmo ela nada quer. Sempre esteve ao teu lado, confortada pelo próprio amor maternal. De nada mais precisa, a não ser ter o filho de volta.

Neste instante, os olhos da mãe e do filho voltaram-se atentamente para o juiz, que apercebendo-se disso, disse ao filho:

- Levanta-te de tua cadeira e corras abraçar tua mãe.

As incisivas do juiz arranhavam profundamente a consciência dos litigantes. Envolvido com as palavras do magistrado, o filho levantou-se de sua cadeira e dirigiu-se ao outro lado da mesa, buscando o colo da mãe, que como verdadeira e boa mãe, o abraçou vigorosamente.

O discurso obtivera êxito e a reclamante e o reclamado compuseram-se, nos termos da proposta do magistrado. A mãe recebendo o filho de volta e o filho obrigando-se a não mais esquecer-se de dar amor à mãe.

Naquele mesmo momento, assinaram o termo de acordo, e, por uma coincidência do destino, a caneta por eles utilizada era de tinta vermelha, quiçá simbolizando o sangue de seus corações.
Esta estória lembra-nos das inúmeras querelas submetidas à Justiça do Trabalho. Lembra-nos, ao mesmo tempo, que todos nós somos irmãos, filhos de um mesmo Pai Criador, sem distinção de classe social.

Em nossa estória, a mãe simboliza os inúmeros empregados que figuram nas reclamatórias que assolam nosso país. O filho representa os empregadores chamados à Justiça obreira. Serve para refletirmos que o empregado sem o empregador não tem trabalho e o empregador sem o trabalhador é improdutivo. São na escala produtiva, um só corpo, uma só carne.

A verdadeira intenção da mãe em ser reconhecida pelo filho, chama-nos a atenção de que o trabalhador almeja antes de tudo, que seu trabalho seja reconhecido como expressão de solidariedade não de inferioridade. O reconhecimento do direito a uma igualdade proporcional que lhe confira na divisão dos bens necessários á vida, lazer, descanso, trabalho, moradia, educação e alimentação.

O juiz simbolizando Deus, é o instrumento de conciliação dos povos, que não se deixa iludir pelas aparências, mas enxerga os pensamentos mais profundos, lendo-os nas entrelinhas dos corações. Em sua sabedoria, busca a conciliação em primeiro lugar, ensinando aos litigantes o caminho da composição.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

PARTIDA

Por MMendes

Morrer, estar em lugar algum.
Estar além, muito além da vida.
Morrer e estancar, secar, desaparecer.
Tornar poeira espalhada pelo vento.

Morrer, difícil de aceitar, de entender.
Um sentimento indecifrável, intangível,
sentir que não se expressa em palavras,
mas com lágrimas e gemidos.

Perda insuperável de um ser irrecriável,
uma chama que se apaga para sempre,
olhos que se encerram num sono eterno.
Um último suspiro, um alívio de sofrer.

Vida e morte, eternamente amantes,
enrolados no romance de triste desfecho.
A vida sabendo que seria abandonada,
assim mesmo se entrega aos seus braços.

Num choro desesperado a vida se agarra à morte.
Segura suas mãos frias num epílogo de desespero,
a morte está determinada, não há volta, só partida.
Não há tempo para mais nada, nem para despedida.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

CINZAS DO PASSADO

Por MMendes

Não guardamos uma história linear. O consciente registra algumas lembranças separadas umas das outras por inúmeras lacunas. Sob esse ponto de vista ,a vida é um livro de contos independentes.Não mais que fragmentos de memória. Juntamos os cacos das memórias e montamos naquele momento nossa estória, tal qual um diretor que corta cenas do rolo principal e cola os pedaços, os seguimentos, criando o filme de nossas vidas. O "make in off " jogamos no inconsciente.

A primeira vez que me recordo de ter colocado um cigarro na boca, foi aos quatro anos de idade. Brincava com meu irmão na esquina e achamos uma bitucas apagadas no chão. Brincávamos de fumante quando meu pai apareceu do nada. Levamos a maior bronca, jogamos aquelas bitucas bem longe e voltamos ligeiro para casa. Noutra ocasião ,meu tio fumava no quarto com a luz apagada. Para meu entretenimento, brincava com a brasa do cigarro desenhando círculos vermelhos.

Nos recortes da memória, talvez essas sejam as seqüências explicativas do vício. O cigarro era apenas uma brincadeira, umas baforadas de fumaça, até que me tornei dependente da nicotina. O cigarro acompanhava os grandes momentos da vida: a felicidade, a tristeza, o namoro, o barzinho, as reuniões, viagens.

Depois de uns oito anos resolvi parar. A mesma mídia que propagava o gosto pelo cigarro, agora o combatia. Em 1982 eu trabalhava no banco. Era proibido fumar no recinto e já havia um fumódromo. Campanhas anti-tabagistas mostravam uma carinha triste de um lado, fumando um cigarro, do outro, uma cara alegre com uma margarida na boca. Bolei um plano. Fumaria dois cigarros por dia, um às três horas da tarde e outro às oito horas da noite. Não fumaria de manhã porque era o horário que cigarro causava mais malefício.

No primeiro dia, a fissura. Quando foi chegando a hora do primeiro cigarro o tempo praticamente congelou, os segundos eram horas e as horas eram milênios. Cinco minutos antes da três coloquei o cigarro entre os dedos e fiquei com o isqueiro na outra mão, com o pulso em posição de ver as horas. Trinta segundos, vinte segundos, dez segundos e fogo. A primeira tragada consumiu o cigarro até o meio, enchi os pulmões de fumaça e prendi a respiração. Quando soltei o ar, quase não saiu fumaça. Ah! Que alívio! É que meu organismo estava precisando muito daquela poluição para sentir-se vivo. Não é incrível nossa capacidade de adaptação? Tempos atrás encontraram um jacaré vivendo nas águas do Rio Tietê !

Quando achei que estava no ponto de largar, voltei a fumar desesperadamente. Estava na praia com meus cunhados, de férias . Choveu vinte dias sem parar e passávamos o tempo jogando baralho, fumando e bebendo. Comprei um pacote de cigarros e fumei o primeiro maço em menos de uma hora.

Quando temos tudo o que queremos, acabamos enjoando e querendo coisas diferentes. Acho que foi por isso que, tempos depois, guardei meu maço numa gaveta do criado-mudo. Disse para mim mesmo que o maço estava ali, ao alcance da mão. Se quisesse poderia fumar todos os cigarros de uma só vez. Não fumei mais e aqueles cigarros foram amarelados pelo tempo. Anos depois coloquei fogo neles, até que se tornassem cinzas do passado, levadas ao vento.

Aprendi uma grande lição. Não se pode apagar o passado, ele é parte permanente de nossa vida. É por isso que muito de vez em quando, minhas desbotadas memórias, ainda que em cinzas, me fazem sentir uma leve saudade de fumar.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

OLHA SÓ QUEM CHEGOU!


Por MMendes

A vida é uma caixa de surpresas. Deixamos de resolver os verdadeiros problemas, os da alma, ocultados no excesso de comida, bebida, cigarro, consumismo, sensualismo. Mas o cobrador um dia aparece e bate a nossa porta. Nossos olhos se abrem justamente no instante em que chega a hora de cerrá-los definitivamente. Mas o que se passa na cabeça de um homem nesse momento, no último segundo da vida? Roberto descobriu o mistério.

Um corpo franzino fenecia no leito hospitalar. Tubos e sondas entravam por suas vias respiratórias. Sua escassa energia vital era monitorada por diversos instrumentos, como que se esperassem o "bip" final para dizer: "-Se foi"! Era doença ruim, câncer de pulmão, ramificado para diversos órgãos. Era fumante inveterado, quatro ou cinco maços por dia. O ar apesar de abundante, já não conseguia penetrar em seus pulmões. Respirava com dificuldade. Uma olheira azulada delineava seus olhos castanhos, fundos e opacos. Era a expressão da morte.

Mal conseguia movimentar suas mãos. Seus olhos parados contemplavam o instante final. Dizem que nesse momento o filme de nossa vida passa diante dos olhos e rexperimentamos a vida rapidamente. Mas, não foi bem isso que ocorreu. Os parentes estavam no quarto. Uns choravam, outros contavam como a doença evoluiu rapidamente, outros buscavam se aliviar fazendo algum gracejo agradável.

Olhando para o passado, a sensação que temos é que a vida é muito curta. A física ensina que o tempo é relativo, e, é mesmo. O último segundo é um tempo especial, ali tudo corre muito lento e há tempo para tantas coisas, até para recuperar ou fazer tudo aquilo que deixamos para trás. É paradoxal, mas o segundo anterior à morte é derradeira chance de compreender o verdadeiro sentido da vida. E assim, não há quem tenha vivido em vão.

Roberto fitava a cena para gravá-la em sua lápide mental, quando todo o cenário começou esmaecer e as pessoas foram sumindo, apagando-se pouco a pouco, até que desapareceram por completo. Quando se deu conta, Roberto estava sozinho no quarto. Alguém abre a porta e uma doce mulher ingressa no recinto. Vestia roupa branca qual as enfermeiras. Seu rosto era angelical de expressões maternas, gesto suave. Seria um anjo descido do céu? Pensou Roberto. Poderia ser simplesmente efeito da dolamina que lhe aliviava as dores.

A mulher abeirou-se da cama e conversou pausadamente com Roberto:

- Como está se sentindo?

Roberto mal levantava os olhos e sem dizer nada, colocou a mão no peito dolorido. A mulher como que entendendo, disse que faria uma espécie de massagem nos pulmões, para tentar aliviar o sofrimento. Ao iniciar o procedimento, uma energia esquisita percorreu o corpo de Roberto. Um calor terrível dominou seu corpo moribundo, como se tivesse deitado em cima de todos os cigarros acesos que já havia fumado. Um suor diferente escorria pelo corpo, um líquido escuro e espesso. Toda a nicotina que seu organismo absorvera durante a vida, deixava seu corpo num só instante. Sua boca exalava muita fumaça. O quarto ficou todo enevoado, mal se via um palmo a frente. A mulher, delicadamente foi até a parede lateral e levantou a janela de correr. A fumaça se esvaiu pela abertura, tragada rapidamente, limpando todo o ambiente. Uma brisa fresca balançava a fina cortina branca e um aroma de rosas tomou conta do quarto.

A mulher passou por Roberto e sorriu. Dirigiu-se até o banheiro e voltou com uma vasilha com água e um pequeno pedaço de pano. Umedeceu o pano e delicadamente limpou a nicotina que recobria o corpo de Roberto.

A cada deslizar do pano, um alívio. Milagrosamente cada escara e ferimento foram cicatrizando. Sentiu um vigor de moço, abriu um largo sorriso em agradecimento, enquanto seus olhos exclamavam admirável espanto.

Não deu nem tempo de dizer uma só palavra e aquela mulher levantando a mão direita encostou o indicador em sua testa. O corpo de Roberto parecia ter entrado em convulsão e depois paralisou em transe. Agora sim, toda sua vida, todos os momentos passaram por sua tela mental, reavivando as alegrias, felicidades, dores e sofrimentos que experimentara no passado. Curiosamente as lembranças ruins depois de experimentadas apagavam-se da memória, enquanto que as boas lembranças permaneciam vívidas.

Ele estava em êxtase profundo, algo que só experimentou quando era criança, quiçá recém-nascido. Dizem os antigos que o recém-nascido sorri quando vê um anjo. Todo mal estava desfeito... Todo sofrimento apagado... Toda lágrima enxugada. A sensação era de que havia tomado um banho de corpo e alma. Uma energia vibrante pulsava em sua mente e o preenchia. Sua vontade era gritar de alegria. Sentiu desejo de viver eternamente. A vida era maravilhosa.
De tanto exultar cansou-se e com seu corpo franzino acomodou-se no colo materno daquela mulher de branco, adormecendo suavemente em uma posição fetal.

Depois de uns minutos, o médico anunciou pesarosamente:

- Ele descansou em paz.

Roberto tinha um leve sorriso no rosto, o mesmo dos recém-nascidos quando vêem um anjo passar.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

METRÓPOLE

Por MMendes

Sem rosto a cidade é vazia.
Pessoas sem rumo e sem cor.
Calçadas tão frias,
abrigam corpor em dor.

Metrópole escura,
rigidez de pedra dura,
uma lápide sem jardim,
um cemitério sem fim.

A vida corre no tempo,
no metrô a vida se vai.
Um transe de corpos que pendem,
insensíveis, não sofrem, não sentem.

No movimento se vão,
nada ao redor alegra.
Não se sabe de que são,
de carne ou de pedra.

Estou onde não estou,
mente e corpo conflitando,
meu corpo aqui está,
minha mente viajando.

Procuro um rosto na rua,
sentir um perfume no ar,
um brilho de estrela,
uma beleza de luar.

PERGUNTA SEM RESPOSTA

Por MMendes


És um sopro de vento,
uma folha levada ao léu.
A vida é um suspiro do criador,
inspira alegria, ao tempo que expira dor.

O tempo é abatedor,
uma corrida vil,
corre criança sobre a relva
tomba na terra um senil.

Na agonia interpela-se o criador:
- Somos um sopro, temos valor?
- Para onde vamos depois do último instante?
- Viveremos eternamente ou viraremos vapor?

Mas Deus se cala ao vento,
sem repostas, caminhamos sedentos.
Seria Deus invisível,
também surdo aos lamentos?

Na resposta silenciosa,
percebi tua existência.
Deus não fixa morada fora,
a resposta vem de dentro.

RENASCER

Por MMendes

Moço triste,
por que a melancolia?
É triste de nascença ou
sofre de apatia?

O que busca?
O eu?
O seu?
O meu?

Quer ser rei ou
vagabundo?
Sopita na sua preguiça ou
quer mudar o mundo?

O que lhe dá prazer?
A erística,
ou o suor
da construção artística?

Em que acredita?
Em Deus, em Zeus,
nos homens ou
no sofrimento seu?

Quem é você?
Um visionário,
um eremita ou
revolucionário?

Será mesmo novo?
Não será um esboço,
caricatura de moço,
realmente um idoso?

E se a morte não vir,
e a vida passar?
Ficará na janela,
sem nada mudar?

Olha a vida que passa,
o céu, seu azul,
como o azul dos seus olhos.
Esqueça o peso da cruz!

Sai da morte e vem pra vida,
vem sorrir e não morrer.
Vem ser gente com a gente,
ser feliz, vem viver.

FANTASMAGORIA

Por MMendes

Quer um guia de luz,
alguém que te conduz.
Não sou eu,
sou fariseu.

Quer um homem ideal,
alguém de verdade.
Não sou eu,
sou virtual.

Quer uma vida sana,
não posso te dar,
sou filho da morte,
de vida profana.

Quer alguém irreal,
algum anjo, deduz,
sou homem de cruz,
pecador e mortal.

Preciso mais de você,
anjo do meu coração.
Teus olhos em busca de luz,
são meu lume na escuridão.

AMBIGUIDADE

Por MMendes

Vida de duas faces,
opostas e diferentes.
Uma atracada,
outra impele para frente.

Inconciso,
andarilho indeciso.
Um passo é normal,
o outro não é igual.

Meeiro de dois espelhos,
concavo e convexo,
difere,
espelha nos dois um reflexo.

Não há qualquer simetria,
dividindo-se,
um é destro,
o outro canhoto.

Simbiose de mistério,
sofre, chora,
alegra e se ri.
é o próprio impropério.

PERDIDO

Por MMendes

Onde está o norte?
o sonho voa nas asas da morte?
Se a morte mata o sonho,
morrer será nossa sorte?

Onde está o homem que não veio?
Padece na sua cruz?
Onde está a vida prometida?
Onde está Jesus?

Abandonas o sacrifício,
o povo entrega à cruz.
Milhares são os nazarenos,
inocentes como você, Jesus.

Onde está o prego? Onde está a cruz?
Não vejo céu nem inferno,
com olhos não vejo luz.

Onde está Jesus?
Morreu?
Onde está?

Quem responde é Satanás.
- Estou aqui!
- Para onde irás?

Fugir para onde?
Um beco sem saída?
Viver? Morrer?
Veredas da vida.

Destino selado.
uns a entregar Jesus,
outros a cravar o prego,
meu destino é fugir,
daquilo que está ao meu lado.

ADÚLTERIO

Por MMendes

O que preenche, esvazia.
Uma água que mais sede dá.
Transparente,
agora opaco e negro.

Aquilo que brilhou,
caminha nas sombras.
Mais ardil,
abate num covil.

Era quente,
hoje é frio.
Mais senil,
ensinando seu vazio.

Se a vida busca,
não saberei jamais.
Busca por toscas veredas,
nos becos onde não há.

Aprende mais do que sabe,
ensina o que nunca aprendeu.
Não sabe se mente ou sente,
artista demente.

No dia contracena,
encena,
obsceno.
Nunca para o insano.

Sua morte mentirá.
Falseará sua sorte,
sonolento,
nos braços da senhora,
há de fingir reclinar.

JUIZ IDEAL

Por MMendes

Honra, justiça e probidade,
teus pilares, tua vida.
Imbatível como a rocha,
incorruptível como o ouro.

Coração doirado,
encouraçado.
De carne e sangue,
peito de aço.

Labuta na esperança,
advoga pela Justiça,
brada pela vida,
morre pela liberdade.

Pai Brasil de pálidas chamas,
pai desses filhos também.
Os filhos expúrios da Pátria,
são os legítimos que têm.

Os que no seio
se deleitam,
roubam o pão e o mel,
oferecem aos filhos expúrios,
o amargo saber de fel.

Sentimento inconsciente,
traído, trai violento,
impinge, impunha,
desfere o punhal.

Tantas quantas,
nenhum porém fatal.
Mata no homem,
somente o animal.

Purifica com o fogo,
molda no ouro,
a couraça edifica,
revestindo o peito a rogo.

Guerreiro mortal,
não imoral.
Combate sua sorte,
sentimento mal.

Imbatível e sagás,
guerreiro antigo,
que chora dentro do peito,
a morte do inimigo.

MULHER ANIMAL

Por MMendes

De forma furtiva,
cativa e rouba meu coração.
Seu corpo feminino,
faz-me menino,
quando doura-se sob o sol.

Teus olhos intrigantes,
se fazem flamejantes,
quando toca teu corpo ao meu,
numa dança sensual.

Seus gestos abusados,
me fazem paralizados,
admirando teu corpo doirado,
acariciado pela luz do sol.

Mulher sensual,
meio humana, meio aninal,
faz-me depressa, agora,
sem pressa me devora.

DESENCONTROS

Por MMendes

Edifica,
depois modifica.
Revolve, envolve,
mas nada resolve.

Uma mistura estranha,
meio bela, cabelos de fera.
Primeiro aquece e,
logo gela.

Pincela colorido,
depois mancha toda a tela.
Indecisa, inconcisa.
É o verso e o reverso.

Vem e me absorve,
vai e me dissolve.
Adora seu nome.
Me olha, me come.

Com unhas de aço,
me abre,
me rasga,
depois some.

Não sei quem é,
me leva nos braços,
me abate na trama,
me olha no chão.

Seus olhos azuis,
me chamam sem fim.
Seus braços porém,
se cruzam sem mim.

Teu coração pulsa quente,
teu peito aparenta.
Corpo obceno,
de gestão tão frio.

ZÉ DAS MEDALHAS

Por MMendes

Lá vai o Zé das Medalhas,
andando pela rua sozinho,
nem se apercebe das falhas,
movendo as pás do moinho.

Vejam no que se meteu,
vocês não vão acreditar,
todos os amigos vendeu,
para a comenda ganhar.

Não tem só o medalhão,
pois junto com aquela medalha,
lhe entregaram a solidão,
e o nome que o achincalha.

Lá vai o Zé das Medalhas,
com seu polido medalhão.
Vendeu todos os amigos,
devia ser Zé Vendilhão.

Lá vai o Zé das Medalhas,
com seu polido medalhão,
agora que vive sozinho,
devia ser Zé Solidão.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

ALGUÉM CHAMADA ALICE

Por MMendes

No canto da tela do computador,
discutindo em meio a tensão,
num gesto ou gemido de dor,
alguém chamou atenção.

Era Alice, um alguém,
não sabia bem quem,
mas que numa só explosão.
Se tornava o novo sucesso.

Alice parece que disse,
ter vivido uma batalha.
parece não, viveu.
Lutou com bravura, infartou mas venceu.

No país que não é de maravilhas,
maravilhas sonha em poder fazer,
dos cantos toscos da vida,
um lugar melhor de se viver.

AMIGO AUGUSTO

Por MMendes

Hoje estou tão sozinho,
Preso numa tarde silenciosa,
sinto-me um pequeno passarinho
distante da liberdade preciosa.

Sou só olhos de menino,
Um corpo quase sem alma,
o sonho de um peregrino,
que dorme na noite calma.

Meus amigos vão voando,
chamados seguem o norte,
Voando o vôo da liberdade,
carregados nas asas da morte.

Quando chegares no destino,
Augusto, diga ao nosso Criador,
para lembrar-se deste pequenino,
este solitário pássaro sonhador.

AOS GOVERNANTES

Por MMendes


Quem enxerga o futuro,
não tropeça no presente,
olhando por sobre o muro,
admira o sol nascente.

Repousa as calejadas mãos,
Nas coisas santas da vida,
Família, filhos, irmãos,
natureza, o pão e a lida.

Não desperdiça o tempo,
vendendo o que não se compra,
tentando apanhar o vento,
correndo atrás da sombra.

Constrói um belo templo,
Para nele habitar,
todas virtudes humanas,
oferecidas num altar.

Entalha-se a todo custo,
esculpindo um homem novo,
fraternal, sincero e justo,
gente simples do povo.

LADRÃO DE GALINHAS

Por MMendes

José roubou prá comer,
sendo levado à prisão:
- Confesso seu delegado,
roubei um pedaço de pão.

- Ladrão de galinha alheia,
a mim você não tapeia.
- Na prisão você vai ver,
terá tempo de se arrepender.

Calado com fome infernal,
ouvia o delegado agitado.
Não sabia pobre coitado,
que ter fome era imoral.

Preso na cela fria,
pensava José, refletia.
Não pensava noutra coisa,
comer o pão que o delegado comia.
Boa Noite José...

O JUIZ ATORMENTADO


Por MMendes

Num lugar não tão distante,
pensava um juiz preocupado,
em sanear suas finanças,
administrar o ordenado.

Ainda era meio do mês
e o salário tinha acabado.
Reduziu o consumo de vez,
mas o gasto havia dobrado.

Lutaria por reajuste,
Se estivesse estimulado...
O teto era um embuste,
deixou a idéia de lado.

Era um juiz honesto,
daqueles curtidos no sal.
Seu temor manifesto,
era parecer Nicolau.

Um pensamento esquisito
percorreu a sua mente.
De comer não necessito,
juiz é deus, não gente.

Trabalhando noite e dia,
dormia de vez em quando.
Da fome se esquecia,
e o tempo ia passando.

O que o juiz não sabia,
é que ele era humano.
Juiz de barriga vazia,
não subsiste neste plano.

Desnutrido e moribundo,
mil sentenças proferiu,
foi juiz até o dia,
que desta vida partiu.

Esta estória dá o tom:
Os Santos estão no altar,
Dinheiro demais não é bom,
também não pode faltar.

REFLEXÃO DA MANHÃ


Por MMendes

Cuidem bem de vossos corações, para que não se tornem duros e áridos pelo concreto da pura razão. Antagônica, a razão afasta a emoção, lembrando que o amor é irracional.

Não deixeis em casa vossos corações, senão a razão apoderar-se-á de vossos olhos, deixando-vos às escuras, donde passareis a confundir o desempregado ao vagabundo, o moribundo ao bêbado e o pobre ao bandido.

Melhor esquecer vossos olhos em casa, levando convosco o coração, que é capaz de ver nos olhos tristes dos pobres, o calvário de Nosso Senhor.

PERSONAGEM AUTOCRATA

Por MMendes
Ao lado da realidade,
na vida em tomos,
representamos quem somos,
fingida personalidade.

Num roteiro suicida,
Um personagem demente,
Domina toda vida,
do ator insipiente.

Com atrocidade nos mata,
Perseguindo a vitória,
personagem autocrata,
escreve sua estória.

Loucura sem igual.
A criatura repleta,
numa cena anormal,
a vida do artista interpreta.

O ator inconformado,
brada ao personagem:
- Sou eu que te interpreta,
e não interpretado.

Pela cria amordaçado,
É relegado o pedido.
No corpo encarcerado,
de viver está banido.

Na prisão solitária,
quem visita é a tristeza,
que apesar da feiura,
o artista vê beleza.

Do cárcere não há escape,
só mesmo conformação.
Não há lugar para o ator,
na vida de encenação.

Em pensamento fugiu,
pra ver estrelas no céu,
Reparando refletiu,
é pintura painel.

Tudo era irreal,
tanto os homens quanto as flores,
as alegrias e as dores,
partes de um contexto virtual.

Ficou aborrecido,
num canto encolhido
sem saber o que fazer,
sentindo o coração padecer.

Carecia de realidade,
de um amor de verdade,
um abraço, um calor,
de um gosto, um sabor.

Definhado em seu porte,
num final arrepiante,
escrito naquele instante,
um amor acenou-lhe forte.

Parecia real sua sorte,
tinha ela olhar brilhante,
lindo corpo provocante,
e assim foi-se com a morte.

MULHER QUE ME MATA

MMendes

Mora na minh’alma,
olhos negros penetrantes.
Com veneno me acalma,
me da sonhos delirantes.

Buscando acalento,
cambaleio rodopio.
Caio no chão sedento,
ofegando, suando frio.

Não posso ver o teu rosto,
a penunbra m’inebria,
mas sinto na boca teu gosto,
és magra de pele fria.

Teu nome, eu não conheço,
mas teu sopro me arrepia.
Em teus braços eu padeço,
não te encontro n’outro dia.

Tens o hálito da morte,
quando joga pela vida,
nas cartas da minha sorte,
em becos que não há saída.

Um dia irei contigo,
na volúpia do teu amor,
numa morte sem abrigo,
dou meu corpo sem calor.

RAÍZES PROFUNDAS

Por MMendes

Num deserto imensurável,
vive um coração amargurado.
De pétalas pálidas e caule murcho,
lançando raízes em busca d’água.

Caule arriado com desvalidas pétalas,
aprofundando raízes,
nas areias cálidas,
sedento, quase desesperado.

Solo adentro, raízes avançando,
perfura as profundezas d’alma,
que é só secura sem acalento,
desespero que não se acalma.

Sobre areia, o sol causticante,
sob ela, raízes fatigadas
por água que não encontra,
em sua busca incessante.

Quando encontrá-la se embriagará,
pois sua sede é enorme.
Num só trago tomará,
se encharcando a ver se some.

Enquanto isso só raízes,
de caule franzino e moribundo.
Olhando aquele arbusto,
não se imagina quão é profundo.

Sou um arbusto no mundo,
no deserto de minh’alma,
as raízes minhas dores,
cada vez mais profundas.

Minha busca é uma sede,
de água doce serena,
de uma verdade real,
de vida que valha a pena.

O TOQUE DE MIDAS

Por MMendes

Ele me ouve demais,
sem sopesar no pedido,
acolhe tudo que peço,
sem antes ter medido.

Nada posso pedir,
muito mais agradecer,
mas o menor dos pedidos,
ele faz acontecer.

Pensava no passado,
pedindo apenas perdão,
dos meus rancores ouvidos,
o mal que foi atendido.

Sela-me os pensamentos,
só para me prevenir,
não dê ouvidos Pai,
a quem não sabe pedir.

Dom semelhante a Midas,
há algum tempo detenho,
com incrível crueldade,
meu sonho é realidade.

Sonho alimenta’lma,
é esperança divina,
mas a dura realidade,
a ilusão assassina.

DESAMOR

Por MMendes

Cumpres teu papel,
aliás, amarelado.
Teu rosto por sobre um véu,
não sente meu lábio molhado.

O tempo que me põe a sofrer,
Permite que durma ao lado,
nas noites me faz morrer,
me cobre num manto gelado.

Talvez não tenha notado,
há quanto te faço apelos,
que se somam nos anos,
no prata de meus cabelos.

Haverá outra vida?
o outono que aproxima,
é tempo de despedida,
de terra caindo por cima.

Para sempre vou viver,
em memórias do passado,
num livro alguém vai ler:
- Morreu sem ser amado.

A DOR E FELICIDADE

Por MMendes

A dor está em todas as diretrizes,
parece que isso é tudo o que temos.
como então seremos felizes,
se ao viver padecemos?

Algumas pessoas buscam na vida,
de todo sofrimento se esquivar,
deixando que a parte sofrida,
outros venham suportar.

Caminham por sobre as dores,
fugindo de todo revés.
As lágrimas dos sofredores,
refrescando-lhes os pés.

Homens secos, sem fermento,
cegos como aqueles de Emaús,
recusam o próprio sofrimento
como o diabo recusou sua cruz.

Toda vez que recusamos,
nosso sofrimento suportar,
o transferimos para outro,
que dele não poderá escapar.

Na vida nem tudo é remanso,
nada se consegue sem esforço.
Para que uns gozem de descanso,
Outros carregam o mundo no dorso.

Ao olhar algum sofredor,
com fome, com frio ou chorando,
reflitas, não seria tua dor,
que ele está carregando?

Se a emoção brotar subitamente
E sentires o pranto chegar,
Vivas no choro intensamente,
as dores quais buscastes te afastar.

Sofras um pouco com ele,
e uma prêmio lhe será ofertado,
pois a verdadeira felicidade
virá das dores que tiveres suportado.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

A GUERRA DAS MULHERES


(*Por: Guilherme Benvenuto Mendes)

Soa o sinal. É dado início a batalha. Um exército com cerca de mil mulheres sedentas de sangue marcham desesperadamente rumo ao seu alvo: os balcões de roupas da liquidação total. Todas possuem um lema em mente, se apoderar da maior quantidade possível de peças e acessórios, custe o que custar, doa a quem doer; afinal, vale tudo no amor, na guerra e nas liquidações de peças femininas. Geralmente as grandes promoções são seguidas de cinco atos: Conquista de território, alianças e formação de blocos, pancadaria, chamar reforços e finalmente o apocalipse.

Ao avistarem as primeiras combatentes chegando, alguns compradores e até os funcionários da loja se colocam em posição estratégica: um se esconde atrás do caixa automático, outro atrás de uma vitrine, dois rapazes ficam próximo a uma exposição de peças de carro, um jovem tenta desesperadamente se pendurar no ventilador, sem sucesso, e um senhor de idade tem um infarto – temos a primeira vítima fatal.

E assim dá-se início ao 1° ato. As mulheres mais magras tiram proveito de sua velocidade e tamanho, e passam furando as legiões de guerrilheiras, chegando primeiro as vitrines e balcões. Inútil, já que as mais gordas desferem-lhes uma investida mortal, arremessando à quilômetros de distancia suas adversárias e assim conquistam seu território, afugentando as mais fracas e se encaixando nos balcões, apanhando para si um punhado de peças.Logo um a um dos balcões ficam cercados de senhoras gordas e enormes que não estão para brincadeira. Formando assim os primeiros monopólios.

Inicia-se o 2° ato. Surgem então três blocos: as monopolizadoras, que tiram proveito de suas conquistas territoriais; as excluídas, que reivindicam um espaço entre as vitrines; e o bloco das mulheres de TPM - tocou, provocou, morreu - que não estão satisfeitas com sua situação e nunca irão estar, desejam simplesmente meter a mão na cara da primeira pessoa que lhes aparecer na frente.

O bloco das excluídas se posiciona estrategicamente. Ficam frente a frente com as monopolizadoras. Momento de grande tensão, não se escuta um ruído sequer na loja. Estão todas aguardando o sinal de ataque, que finalmente é declarado, usando o código de batalha entre as mulheres:

-Ei, pirua, essa roupa é minha! Eu vi primeiro!

O conflito se inicia, começando o 3° ato: a pancadaria. A artilharia age com grande velocidade e dispara uma série de tamancos e sandálias voadoras, que fazem as primeiras vítimas do confronto. Rapidamente a munição se esgota que é quando o conflito direto começa. As mulheres mais gordas usam de sua arma mais letal: “a bundada extra G”, enquanto as mais magras apelam para arranhões e puxões de cabelo. Já o bloco das mulheres de TPM sai batendo em qualquer uma sem nem sequer tomar partido na batalha, estas se autodenominam de bárbaras, com orgulho e muita sede de sangue.

Em meio ao conflito, duas mulheres se destacaram pelo empenho com que batalharam. Uma senhora já de idade, cabelos grisalhos e com rugas, puxava o cabelo de outra mais nova e loira, que lhe retribuía mordendo o braço e arrancando gemidos de dor. Ambas disputavam por um lindo suéter, a mais velha queria dá-lo à filha e a mulher loira por sua vez, à sua mãe. Quando finalmente as duas se olharam, foi que perceberam que não passavam de mãe e filha. Muito envergonhadas as duas se abraçaram entre lágrimas.

Em meio à confusão duas mulheres se sobressaíram como líderes. Uma gorda, monopolizadora, de origem alemã, com temperamento instável e um bigode na cara “à La Charles Chaplin” – que dizia existir uma raça ariana, a das monopolizadoras, que por direito divino deveriam possuir todos os estoques de roupas da loja. Já a outra, era magra e de origem russa, muito repressora e severa – dizia que todas eram iguais e mereciam a mesma quantidade de roupas.

As duas líderes decidem dar uma retomada estratégica, para contabilizar as perdas e reagrupar. Chegou a hora de chamar reforços! Cada uma das mulheres sacam seus celulares, das mais sortidas cores e designers, algumas sacam ate dois ou três celulares ao mesmo tempo. Não demora muito para que quase metade da população feminina da cidade esteja presente. Os blocos retomam as suas posições frente a frente, mulheres de todos os tipos e de todos os lugares estavam ali, algumas com olho roxo, arranhões pelo corpo, cabelo desarrumado, maquiagem borrada, salto quebrado e até aleijadas, mas todos com muita sede de sangue.

Uma freira, que pertencia ao bloco das mulheres de TPM finalmente se acalma, e passado o momento de stress, percebe a situação ridícula da qual fazia parte e decide tomar uma atitude. Ela chama a atenção de todas as mulheres ali presentes e, com um gesto, retira as roupas do corpo e as joga no chão, ficando apenas com a roupa íntima. Então exclama:

-Façamos como São Francisco de Assis! Não nos apeguemos a esse materialismo que nos é imposto, vamos jogar as roupas de nosso corpo fora, junto com essas que nos querem vender e façamos uma grande fogueira!

Como resultado: Ergueram-na em um dos balcões e a crucificaram ali mesmo. Suas ultimas palavras foram: “Jesus se sacrificou para salvar os homens, eu humildemente faço o mesmo!” Ela foi “devorada pelo consumismo.”

5° ato: apocalipse. Einstein certa vez disse: “Não sei como será a 3° Guerra Mundial, mas a 4° será de paus e pedras.” Einstein certamente não conhecia a Guerra das Mulheres. A batalha foi histórica. Gritos, ponta pés, estilhaços de vidro, roupas rasgadas, mulheres inconscientes, crianças chorando e muito mais. Não sobrou nada. Nem mesmo as bombas atômicas de Hiroshima e Nagassaki destruíram tanto como uma manada de mulheres durante uma liquidação. Não houve vencedoras, também não sobrou uma peça de roupa sequer. A liquidação fora um sucesso!

Fora da loja algumas mulheres ainda se recompunham e tentavam guardar suas compras no carro. Umas ajudavam as outras sem se importar a qual bloco elas pertenciam e trocavam algumas peças de roupa entre si. Uma monopolizadora e outra excluída ainda trocavam sorrisos e exclamavam uma para a outra satisfeita com as suas compras:

- A liquidação foi um Máximo, mal posso esperar pela do ano que vem, ela promete ser a maior de todas!

OS SOLUÇOS SUFOCADOS PELO SILÊNCIO


(*Por: Guilherme Benvenuto Mendes)


Eduarda tinha sempre aquele sorriso melancólico, como quem sorri simplesmente por que esqueceu de parar de sorrir. Seu olhar era triste, parado, quase doentio, como quem estivesse tramando uma vingança, um roubo, um assassinato ou quem sabe suicídio. Enfim, algo que chamasse atenção, ela queria é ser notada.

Pobrezinha, tinha manchas pela pele, era obesa, tinha os lábios apagados, o nariz amorfo, pestanas grossas, mãos frias e trêmulas, cabelo seboso e sem charme. Seu olhar lembrava o de um recém defunto, no exato momento em que se expira e se esvai o último lampejo de vida; e jamais fitava alguém nos olhos. Tinha medo de que a olhassem com uma expressão de nojo, e com razão, pois de fato o faziam.

Às vezes a natureza dá expressões de grande sarcasmo e ironia. Se fosse para ser feia, que fosse inteiramente feia; se fosse para ser ruim, que fosse inteiramente ruim. Eu não compreendia por que colocar um defeito em uma pessoa virtuosa, ou colocar uma virtude em uma pessoa que quase não as tinha. Por ironia da natureza, Eduarda tinha uma inteligência incomum, de invejar até mesmo aos professores. (“Se inteligente, por que feia? Se feia, por que inteligente?!”) Ela seria capaz de exercer a profissão que quisesse. Quando vinham lhe perguntar o que queria ser da vida, ela sempre respondia:

-“Eu quero ser alguém!” Alguns até se ofendiam com a resposta. Mas ela estava apenas sendo sincera.

Ainda sim, com toda essa inteligência, não possuía admiradores, talvez não tivesse nem amigos. Na escola sempre se sentava nos fundos, escorada na parece dos cantos, sozinha e esquecida. Mal prestava atenção na aula, estava mais interessada em contemplar a ponta do nariz ou os remendos no seu uniforme. Também nem precisava, afinal, era autoditada.

Era o primeiro tempo de aula, eu estava junto de meus amigos conversando sobre o novo celular de Felipe, que fazia grande sucesso e euforia na sala. Felipe trazia em si todos os defeitos mais asquerosos cabíveis em um garoto do colegial: era invejoso, exibido, arrogante e um péssimo estudante. Por ironia era muito popular. Possuía os mais deslumbrantes apetrechos da modernidade. Perguntava-me se popular era ele ou o seu celular. Ele de certo fazia o mesmo questionamento, mas de que lhe importava, afinal, ele era popular (“Oh! Quanta beleza... mas não tem cérebro!”). Como se o celular fosse uma virtude avulsa que lhe dava grande valor, às vezes me assustava chegando à conclusão que de fato era.

Um de seus principais passatempos era zombar dos alunos impopulares. Eduarda era sua vítima preferida:

-“Agora vocês imaginem aquele celular medieval da Eduarda. Eu teria vergonha de trazer um “tijolo” daqueles na aula!” Exclamou Felipe alto o suficiente para que todos na classe pudessem ouvir e caíssem na gargalhada.

De repente, vi os olhos de Eduarda serem tomados de uma ira mortal, urgia nela um desejo de vingança que clamava por justiça. Fez-se silêncio na sala e criou-se uma grande expectativa de resposta, que não veio. Não era do feitio de Eduarda. Ela simplesmente desviou o olhar e sua expressão tomou a forma de sempre, talvez um pouco mais melancólica, como quem ouvisse uma triste peça de Chopin durante um enterro. Era seu orgulho que estava sendo “enterrado”.

Sempre guardei em mim algum valor por Eduarda. Talvez fosse pena, quem sabe compaixão. Mas tinha o sincero desejo de que ela fosse feliz. Às vezes me sentia triste olhando para ela e pensava: “quem sabe ela não passe um pouco da sua tristeza para mim e assim se torne menos triste.” Nunca me atrevi a conversar com ela. “Se a beleza abre portas”, a feiúra de certo as fecha. Além do mais não era louco a ponto de me tornar chacota da sala por ir conversar com a “esquisita”. Mas estava decidido, um dia iria falar com ela e dizer que admirava a sua grande inteligência. Talvez ninguém nunca tenha dito isso a ela, ela morava sozinha, distante dos pais e quem sabe eu pudesse ajudá-la dando esse apoio.

Quando a aula terminava, ela era sempre a última a sair da sala, ficava entretida olhando a ponta dos pés ou as unhas por fazer. Todos iam se retirando da sala um a um, sem nem sequer dar atenção a ela nem um “até logo” que fosse. Mas eu já estava decidido, depois falaria com ela, não suportava mais ver a sua agonia.

Para meu espanto, no dia seguinte ela não foi à aula, ela não costumava faltar. Isso me deixou perplexo, a ponto de ir perguntar ao coordenador se havia acontecido algo grave. Ele um pouco sem jeito me disse:

-“No dia anterior como de costume eu passei trancando as salas e não percebi que ela ainda estava lá. Coitada, ficou horas presa na sala sem ninguém para socorrê-la. Deve ter se sentido mal e não veio à escola.” Decidi então perguntar ao coordenador o endereço dela, quem sabe ela estivesse precisando de consolo.

À tarde daquele mesmo dia, fui até a sua casa. Era pequena e muito humilde, não tinha portão e estava toda trincada. Tentei tocar a campainha, mas não tive resposta, ouvia uma música muito alta vindo de dentro da casa e talvez ela não tivesse ouvido a campainha por causa da música, a porta estava trancada. Contornei a casa por um corredor e vi que nos fundos a porta estava aberta. Entrei, a porta dava na cozinha. A casa por dentro era muito velha e estava caindo aos pedaços, tinha pratos e copos quebrados por todos os lados, os armários estavam todos abertos, estava uma verdadeira bagunça. A música começou a ficar mais alta e percebi que vinha de um dos quartos, pude identificá-la, era a Nona Sinfonia de Beethoven.

Fui-me aproximando do local, até que dei com a porta do quarto fechada. A Música estava em uma altura ensurdecedora. Decidi abrir a porta e ao cruzá-la, era como se tivesse entrado em outra dimensão. Havia estabelecido um marco em minha vida: tudo o que eu havia vivido antes de atravessar a porta, e o que eu viria a viver após atravessá-la. Minha vista tornou-se turva, não sei mais se estava lúcido ou delirando, mas podia apenas ver aquele sorriso melancólico de Eduarda, seus olhos, mas do que nunca frios e sem vida, me olhavam incriminando-me, como quem diz “se a carapuça servir?”. Seu corpo levitava no ar, de repente, a imagem borrou, fechei os olhos e senti-me no céu. Era carregado nos braços de Eduarda, que agora tinha longos cabelos loiros e reluzentes, suas manchas e imperfeições haviam desaparecido. Tinha uma expressão serena e tranqüila, pela primeira vez senti-a feliz e em paz consigo mesma, não por que havia perdido a sua feiúra, mas sim por que se sentia realizada. Ambos trocamos sorrisos.

Acordei muito confuso, havia desmaiado no quarto de Eduarda. Era fato, ela havia cometido suicídio. Seu corpo ainda planava no ar, preso por uma corda. Chamei por socorro. No dia seguinte, realizou-se o seu enterro. Haviam quatro pessoas apenas.O padre, eu, um senhor e uma senhora que choravam desconsolados. Esse acontecimento iria me acompanhar por toda a vida. Quem sabe se eu tivesse falado com ela antes, ela mudasse de idéia. Via-me como um assassino, era culpado. A cerimônia durou pouco, o padre disse poucas palavras, ninguém mais se pronunciou. Joguei algumas flores sobre o caixão, e pensei ter ouvido um obrigado em voz baixa. Quem sabe eu realmente tenha ouvido.

No dia seguinte na escola, ninguém havia percebido a falta de Eduarda, a escola não comentou nada, tudo continuou normalmente, como se nada tivesse acontecido. As pessoas riam, se divertiam, conversavam umas com as outras. Mas eu sentia a falta que fazia aquela garota, que sentava sempre no fundo, encostada na parede, a contemplar a ponta do nariz.