quarta-feira, 29 de abril de 2009

O PÓ DA TERRA

O PÓ DA TERRA
*Por MMendes

As paredes daquela velha igreja estavam impregnadas de história. Doze pilares sustentavam sua abóbada adornada por desenhos magistrais. O ar estava impregnado de um elemento místico. O chão era feito de largas tábuas de jacarandá maciço, todas gravadas com números pirografados. Murilo entrou humilde e seus passos ressoavam pelo chão de madeira que rangia a cada passo. Era como se o chão lançasse murmúrios de uma multidão cadenciados pelo ritmo das passadas.

Quem conhece o costume sabe, embaixo de cada uma daquelas tábuas do chão da igreja, jazia enterrado um fiel que trabalhou e morreu naquela comunidade. Aquele era um solo sagrado, onde se guardava aqueles que pertenciam a Deus. Murilo conhecia o costume. Seus ancestrais estavam ali, dormentes, aguardando o juízo final. Foi até a igreja porque estava com problemas no casamento. Buscava uma fagulha de luz. Na realidade acho que estava com problemas existenciais por causa da proximidade dos quarenta anos. Em momentos como esse, nos sentimos entre a vida e a morte. Aquela velha igreja era o ambiente apropriado. A própria representação do limbo.

O sacrário ficava ao lado da nave central. Uma pequena sala iluminada por uma tênue fonte de luz. Sobre uma mesa de madeira que ficava na entrada, estavam depositados um crânio humano e uma ampulheta lembrando a efemeridade da vida terrena em contraponto com o sagrado que é eterno. Os povos antigos encaravam a morte com naturalidade e símbolos como esses não causavam temor, nem espanto ou ojeriza. Hodiernamente tememos a morte. Amedrontados sempre fugimos do assunto. Pensamos que esse dia nunca irá chegar. Com isso nos tornamos pródigos e esbanjamos a vida toda. Acreditando que viveremos para sempre destruímos valores eternos a ponto de comprometermos a própria vida do planeta. Para os antigos daquela comunidade, a morte era o complemento, a coroação da vida. Havia um profundo respeito aos mortos, quase um culto aos ancestrais.

Depois de percorrer a nave central da igreja e fazer a reverência costumeira, Murilo caminhou para a sala do sacrário e ajoelhou-se em oração. Sentia-se frágil e perdido. Brotou vontade de rezar a oração Ave Maria. Foi a primeira oração que aprendeu com sua avó Isolda, quando ainda era bem pequeno. Achava-se pequenino. Quem sabe, justamente por isso buscou consolo naquela oração de criança. Rezava desesperadamente a oração, uma após a outra, sem qualquer método ou propósito.

A medida que foi rezando, esvaziava-se de si pedindo luz. De repente um acontecimento insólito. Sem saber explicar como aconteceu, foi transportado para um lugar totalmente escuro. Uma escuridão diferente, como se um nevoeiro negro o envolvesse. Distante via apenas uma pequena estrelinha que se movia em sua direção. Quando a luz chegou mais perto, percebeu que era Nossa Senhora. Estava de costas, podia ver o manto azul celeste. Estava iluminada da cintura para cima. Não podia ver seus pés, apenas percebia que ela se movia lentamente em sua direção. Quando chegou a uma pequena distância virou-se. Suas mãos em forma de cuia seguravam delicadamente alguma coisa, tal qual como segura-se água.

Quando chegou bem perto, Murilo olhou naquelas delicadas mãozinhas para saber o que elas carregavam. Não havia nada, apenas luz. Maria carregava cuidadosamente uma porção de luz. Olhou para Murilo e continuou até que suas mãos penetraram seu peito. Continuou caminhando, enquanto entrava literalmente dentro do corpo de Murilo. Parecia que buscava guardar ali dentro, a porção de luz cuidadosamente carregada, até que desapareceu por completo.

Como acordasse de um sonho, estava de volta à sala do sacrário. Parecia ter sido um sonho, mas era viva a sensação de ter curvado o pescoço para olhar nas mãos de Maria. Envolvido naquela emoção ficou em dúvida quanto à realidade vivenciada. Mas era real. Teve uma visão. A luz que tanto pediu veio pelas mãos de Maria, intercessora dos homens. Ela havia colhido essa luz da própria fonte que jorra no meio do paraíso. Caminhava de costas para que seus olhos não ficassem cegos pela escuridão que envolvia Murilo.

Depois de um tempo Murilo levantou-se e caminhou para fora. Ao caminhar sobre o solo sagrado da Igreja, uma voz sussurrou em seu ouvido direito: “- Tu és pó e ao pó tornarás”.

Não, não era uma maldição. Era uma benção. Era um chamado de Deus para que Murilo abandonasse a idéia de separação, superasse seus conflitos e voltasse para sua família. A luz recebida de Maria abria-lhe os olhos, os mortos do assoalho sussurravam abrindo os ouvidos. Tal como o pó torna ao pó, havia entendido que deveria voltar àqueles a quem pertencia. O marido à mulher, o pai aos filhos.Lá fora o sol castigava os olhos, dissipando de vez a escuridão. Murilo levou a mão direita sobre os olhos como proteção. Seus olhos estavam desacostumados à luz. E assim voltou para casa caminhando sobre os cascalhos da rua. Cada pedra parecia nova, como renovado estava seu espírito.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

A LUTA DE SAMUEL

*Por MMendes

A comunidade se preparava para a festa da Páscoa judaica. Samuel acordou muito cedo para preparar a banca na feira ao redor do Templo. Jardão, seu patrão, era um homem muito severo. Samuel necessitava do serviço para dar de sustento à família. Era um operário submisso, tinha medo de ser demitido. As estrelas ainda estavam no céu quando Samuel tomou um minguado quebra-torto, colocou parte da mercadoria sobre o lombo do burro e amarrou as cabras numa cordinha. Enquanto puxava o animal e as cabras, caminhava em silêncio passo a passo, com suas velhas sandálias de tiras de couro.

Ao chegar ao seu ponto junto ao Templo, fez a reverência de sempre e começou a arrumar a banca. Samuel vendia animais para o sacrifício judaico e ganhava uma miserável comissão pelas vendas. Trabalhava arduamente quinze horas por dia. Jardão exigia que gritasse o dia inteiro, oferecendo a mercadoria a um preço escorchante. Os judeus sentiam-se obrigados a fazer o sacrifício, temendo que Deus não perdoasse seus pecados e, com isso, fossem amaldiçoados. Por isso aceitavam pagar o preço absurdo exigido pelos vendilhões do Templo. No final do dia Samuel já não tinha mais voz, mas a canastra de Jardão estava abarrotada de moedas.

Era quatro da tarde e Samuel não tinha almoçado. Sem forças quase não parava em pé, quando Jardão começou a empurrá-lo aos insultos e constantes ameaças de demissão. Samuel caiu ao chão. Jardão armava-lhe um chute nos flancos, quando de repente, um homem chamado Jesus surgiu do nada, impediu o golpe e empurrou Jardão. Em seguida deu a mão direita a Samuel e disse:

- Levanta-se.- Sem que se apercebesse, naquele momento operava-se um dos milagres que não foram escritos na Bíblia. Jesus ressuscitava em Samuel a consciência de que era merecedor respeito, consciência essa, morta desde o momento em que abandou a luta por uma vida digna. O empregado acreditava que o maltrato do patrão era uma cláusula implícita do acordo de trabalho. Assim aceitava aquelas humilhações como prerrogativa do patrão. Mas, o milagre de Jesus iria revogar essa cláusula definitivamente.

Depois que Samuel estava em pé, Jesus e Jardão começaram a discutir. Jesus dizia:
- Você não tem compaixão desse empregado? Se continuar a explorar o povo e a tratar seus empregados como animais, você será condenado pela Justiça Divina. Seus bens serão expropriados e, então, blasfemará contra Deus.

Sem dar atenção às advertências, Jardão enfrentou o protetor de seu operário com uma chibata feita de cordas. Porém, Jesus foi mais hábil e tomou a arma de sua mão. Em seguida, açoitou Jardão, bem como outros patrões que a ele se aliaram e igualmente maltratavam os trabalhadores. Jesus gritava:

- Vocês converteram a casa de meu pai num covil de ladrões e exploradores.

Irado Jesus foi segurado por um amigo de nome Simão, que pedia que se acalmasse. Samuel ficou admirado como Jesus enfrentou seu patrão, exigindo tratamento digno aos trabalhadores. Depois disso, os amigos daquele valente homem o levaram para fora dos muros do Templo.
Samuel encorajou-se e daquele dia em diante passou a se reunir em segredo com um grupo de operários. Encorajavam-se mutuamente a enfrentar seus patrões exigindo condições dignas de trabalho, melhores salários e redução de jornada de trabalho. E assim decidiram fazer uma greve geral, às vésperas da Páscoa, quando o comércio era mais promissor.

Naquele grupo havia um espião de nome Josué. Numa quinta-feira antes da Páscoa, Josué foi ter com Jardão. Traiu Samuel em troca de dez moedas de ouro. Jardão se reuniu com os outros comerciantes e, a fim de desencorajarem os demais trabalhadores, decidiram armar uma cilada para Samuel. Seguindo o plano, Josué avisou um zelote que havia um grupo de inconfidentes, afirmando que Samuel queria com ele se reunir. Os zelotes eram um grupo de revolucionários que buscavam atentar contra o Império Romano. O zelote viu a oportunidade de montar um levante e aceitou o convite.

Quando compareceu disfarçado até a banca onde trabalhava Samuel, a milícia o apanhou e também prendeu Samuel. Ambos foram acusados de conspirar contra a economia local e contra os romanos. Foram presos, julgados no mesmo dia e condenados a crucificação. A execução da pena se deu no dia seguinte.

Quando Samuel já estava na cruz, percebeu que ao lado estava Jesus, o homem que o havia protegido contra Jardão. Nesse momento disse com sofreguidão:

- Senhor, é um homem justo. Com certeza, assim como eu, padece nessa cruz porque defendeu os humildes e lutou por um mundo melhor. Lembre-se de mim quando chegar minha hora.

Jesus respondeu-lhe:

- Samuel, eu te prometo. Ainda hoje você estará no paraíso comigo.

Apesar da agonia, Samuel sorriu. Aquele homem ao seu lado foi o único que teve a coragem de enfrentar seu patrão, o tratou com respeito e inspirou a lutar por sua dignidade. Parecia saber que, assim como o direito é fruto de uma dolorosa conquista, só ingressa no paraíso aquele defende seus ideais até a morte.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

A MÁQUINA

A MÁQUINA
Por MMendes

Metido numa camisa de força seu corpo contorcia e corcoveava, o homem berrava:

- Soltem-me, chamem um advogado. Exijo um julgamento justo.

Quatro homens de branco tentavam segurá-lo firmemente. Dois o seguravam pelos pés e outros pelo tronco. Seus olhos arregalavam-se e sua boca espumava. Com muita dificuldade foi conduzido para dentro da viatura, que saiu em disparada com as sirenes ligadas.

- Essa prisão é ilegal. Onde está o mandado de prisão? Quero meu advogado. - Gritava o homem insistentemente até que lhe aplicaram um sossega leão. Ele apagou completamente. Quando acordou estava dentro da sala plenária do Tribunal. A sessão estava em andamento.

- Trouxemos o fujão de volta. - Disseram os homens de branco ao presidente daquela corte e retiraram-se do recinto.

O preso era um dos juízes de uma das varas daquela jurisdição. Havia fugido na tentativa de livrar-se do incomensurável volume de trabalho. Um verdadeiro Monte Everest de processos com sentenças e despachos atrasados. O ritmo de trabalho estava além de suas limitações humanas, não conseguia se amoldar às duras condições de trabalho.

O serviço acometido ao juiz era uma loucura, na literal acepção da palavra. Dezenas de audiências, dezenas de sentenças e centenas de despachos por dia. Estava obrigado a cumprir os exíguos prazos processuais e considerando o volume de serviço, não dava conta. Por isso tentou fugir em vão daquela jurisdição. Foi apanhado e agora seria submetido ao julgamento sumário de um processo administrativo.

A corte estava reunida, o processo devidamente instruído, o juiz teria julgamento imediato. Os desembargadores cochichavam entre si, enlouquecidos por uma severa punição ao infrator. De repente o presidente desferiu um golpe de malhete sobre a mesa e deu o veredicto:

- O réu foi considerado culpado de ineficiência. Os números do boletim estatístico revelam que sua produção foi insuficiente, acabando por comprometer o andamento da Máquina Judiciária. Condeno-o a julgar imediatamente todos os processos pendentes e colocar o serviço em ordem no prazo improrrogável de cinco dias.

Todavia, os membros da corte sabiam que seria impossível realizar o serviço dentro do prazo, considerando a capacidade de produção do condenado. Mas, ali estava envolvido o interesse público, o custo judiciário e aplicava-se a regra de que o interesse privado sucumbe ao interesse do Estado. Dessa forma decidiram tomar medidas para garantir a eficácia da condenação e melhorar a eficiência daquele organismo preguiçoso.

Determinaram ao meirinho que abrisse sua boca à força e ministrasse uma dose cavalar de um forte estimulante. Para garantir a fixação do juiz à jurisdição, evitando que fugisse novamente, ataram seus pés a uma corrente presa a uma bola de ferro. Retiraram a camisa de força, mas o amarraram sentado sobre uma cadeira. Para garantir que não dormiria, apesar do estimulante, ligaram um sistema de eletro-choque, caso vacilasse.

Os demais juízes de primeiro grau foram convocados para assistir a sessão e cada qual se comportava de maneira muita estranha. Um coçava a cabeça, outro dava gargalhada, outro chorava. Havia um que parecia ter o olhar perdido, indiferente a tudo aquilo, enquanto outro sentado gemia de pavor, encolhido abraçando as pernas.

Em seguida o levaram até a mesa munida de um computador, recoberta de pilhas e pilhas de processos. O estimulante começava fazer efeito. Os dedos do juiz digitavam com tanta velocidade que se podia ver fumaça saindo do teclado. As veias de suas mãos ficaram volumosas com o fluxo de sangue. O juiz tornava-se ofegante. Sua temperatura corporal aumentou provocando uma abundante sudorese que lhe escorria à face e molhava a roupa. Ainda assim, o meirinho lhe dava uns choques vez em quando, ordenando que aumentasse a velocidade.

O secretário do pleno debitava do boletim estatístico uma a uma as inúmeras decisões proferidas. A cada número o plenário e a platéia gritavam enlouquecidos:

- Mais um, mais um, mais um.

Depois de exatas 120 horas contínuas, o trabalho estava terminado. Sem qualquer energia vital o juiz faleceu sobre a mesa. As primeiras falanges dos dedos sumiram desgastadas pela frenética digitação. Os tendões e as articulações das mãos estavam em frangalhos. Os olhos estavam adornados por uma negra olheira. Nesse momento irrompe o recinto o médico psiquiatra daquele Tribunal:

- Seus loucos. O que vocês fizeram a esse pobre coitado? - Disse o médico apressando-se a prestar socorro, cujo paciente infelizmente jazia estirado no chão. O médico chamou por socorro e os enfermeiros de branco retornaram. Incontinente foram empurrando os desembargadores e os demais juizes em direção a uma porta que dava para um grande patio, afastando-os do morto.
Auxiliado pelos enfermeiros, o médico coloca o corpo numa padiola e dirigiram-se à viatura da ambulância, que estava no patio. Ao passarem com o defunto entre os juizes e desembargadores, registraram as reações mais imprevisíveis.

- Eu sou deus. - Gritava o presidente freneticamente.

- Eu quero números, quero números, quero números. - Repetia o corregedor sem parar.

- Eu sou a lei. - Berrava um dos juizes, ao lado de outros que diziam ser o Estado, a verdade, Napoleão, Jesus Cristo e por ai adiante.

A ambulância passava silenciosamente entre a multidão dirigindo-se ao portão de saída. Já não havia pressa, o homem estava morto.

O porteiro verificando tratar-se do médico psiquiatra, abre os portões. Deu passagem à ambulância que seguiu por uma estradinha a se perder de vista. Olhando para trás podia-se ver uma imensa construção cercada de um muro alto e branco, fechado por imensos portões de ferro. Sobre o portão podia-se ler: “Manicômio Judiciário”.

Aquele manicômio foi especialmente construído para abrigar os funcionários do Poder Judiciário que, por uma ou outra razão, perderam a razão e andavam perdidos nos labirintos da loucura. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

sábado, 18 de abril de 2009

COMEÇANDO O LIVRO PELO FIM

COMEÇANDO O LIVRO PELO FIM
Por MMendes

Anos atrás três amigos quarentões bem sucedidos se encontravam numa mesa de bar para a tradicional conversa de boteco. Depois de alguns chopps a mais perguntaram-se acerca do que fariam quando chegasse o dia da aposentadoria. Um afirmou que iria praticar ociosidade e curtir a vida com viagens, aproveitando o tempo que lhe restaria. Outro disse que mudaria radicalmente de profissão e recomeçaria tudo novamente. O terceiro amigo, que se chamava Giuliano Kepler, para espanto geral, afirmou com uma cara marota que sonhava em ser “lover boy”, um garoto de programa.
“Lover boy” depois dos 60 anos? Vai gastar toda a aposentadoria em medicamentos para impotência e estimulante sexual. Ironizaram os amigos, caindo na gargalhada.
Giuliano riu-se também, achando graça da idéia, embora la no fundo do coração alimentasse uma vontade reprimida de romper com a rotina de sua vida. Apesar de ser um profissional bem sucedido do alto escalão do governo, sua vida pessoal era um tanto conturbada. Acumulava um casamento desfeito, muitos namoros mal sucedidos e não tinha filhos. Era uma pessoa tímida e formal. Podia-se ver isso em seu vestuário, na maneira erudita de falar, no corte de cabelo e no comportamento convencional. Era uma personalidade rígida, totalmente incompatível com o que se espera de um garoto de programa.
Apesar de não ter o menor dom para a pretensa profissão, sem saber o por quê, Giuliano alimentava mesmo essa fantasia. Penso que na verdade, sentia-se infeliz e incompleto. Com tal transgressão buscava escapar da prisão emocional em que se meteu. Para isso era preciso romper com os muros que o cercavam. Era preciso uma revolução em sua forma de ser. Sua alma clamava por socorro:
Oh! Quem poderá me socorrer? Em sua fantasia, logo saltava à frente o herói dos heróis. Irreverente e extrovertido. Alguém capaz de dar um sentido à sua vida vazia, de preenchê-la de novidades e alegria. De arrancar aos gritos, o delirante amor da mulheres. O super “lover boy”.
O tempo passou e finalmente chegou o dia da aposentadoria. Parecendo seguir um ritual secreto, Giuliano foi até o shopping. Comprou umas roupas transadas. Ternos e gravatas nunca mais. Voltou para seu apartamento e foi até o guarda-roupas. Arrancou com força todas as roupas que lembravam o passado, embolou tudo com os vários sapados de cromo alemão, colocou tudo num saco preto e dali para a lixeira. Depois, voltou-se para o guarda-roupas quase vazio. Passou a dependurar as novíssimas peças que comprou no shopping. Um misterioso sorriso desenhava-se em seus lábios e um fulgor lampejava nos olhos. Seu closed seria, dali em diante, um espécie de batcaverna. Ali o misterioso personagem, que naquele instante incorporava, sairia a se esgueirar pelos motéis e pelas camas das moçoilas e senhoras, a procura de aventura, amor e sexo.
Pouco depois entrou na internet, acessou a página do maior jornal da cidade e plantou um anunciou:”- Prazer e sexo animal. Ligue para Super Lover Boy”, deixando para contato tão somente o número do novo celular que acabara de adquirir, nada mais. No fechar da tarde do dia seguinte, nada ainda. Nenhuma ligação. De tempos em tempos Giuliano olhava o celular para saber se não havia alguma chamada perdida. Estava ansioso.
De repente, seu celular tocou. Um frio percorreu sua espinha de cima para baixo, terminando numa leve pontada na região lombo-sacral. Seu coração disparou. Respirou fundo três vezes temendo um ataque cardíaco porque seu colesterol andava meio alto e a pressão arterial meio desajustada. Suas pernas ficaram tão bambas que chegou a sentir dor nos ossos do joelho. O tremor de suas mãos, lembrando mal de parkinson, quase não permitia que apertasse a tecla “accept” do celular. Esses sintomas se justificavam porque era um homem de 65 anos de idade, recém aposentado. Mas, afinal de contas, o futuro estava ali em suas mãos, pronto para entrar e mudar sua vida. Segurou firme e atendeu o celular dizendo:
“- Lover Boy pronto para o prazer, a sua disposição.”
Do outro lado da linha, uma voz sensual. Parecia mais o miado de uma gata no cio, sussurrando, pedindo sexo. Giuliano não conseguia se conter. Finalmente haveria de fugir dos muros da prisão em que se encontrava e a chave da porta do cárcere estava ali, do outro lado da linha. Aquela voz sensual, ainda sem nome, lhe deu um endereço e pediu urgência na entrega da mercadoria. Sem perder tempo, tomou banho, colocou uma daquelas roupas transadas, perfumou-se. Por causa do costume, penteou cuidadosamente o cabelo até que nenhum fio estivesse fora do lugar. Olhando-se no espelho viu seu passado refletido. Num ato de fúria descabelou-se apressadamente. Os cabelos foram assentados com as próprias mãos. Afinal, era um homem irreverente de agora em diante, nada de pentear cabelos. Ah! Evidentemente tomou aquele comprimidinho estimulante sexual para ajudar e garantir que não falharia na hora “H”.
Enquanto dirigia seu carro a caminho do encontro, Giuliano sonhava com a cliente de voz tão sensual:
Seria uma atendente de tele sexo? Que bobagem a minha. Pensou ele.
Deve ser uma gatinha toda queimadinha de sol, com aquelas marquinhas brancas de biquini. Ou seria uma loiraça de pele e pelos absolutamente alvos? Quem sabe uma morena quente e transada, cheia de curvas delirantes? Permitiu-se ir tão longe em pensamento, que quase sentia-se cansado só de pensar.
Do outro lado da cidade, num apartamento de classe média, uma mulher de quase 60 anos, ligeiramente pintada, vestia um babydoll preto. Fazendo conjunto, uma tanguinha tipo fio dental exibia umas plumas sobre o Monte de Vênus e as várias celulites de suas nádegas. Uma cinta liga apertava suas coxas brancas e flácidas, marcada de discretos vasinhos de varizes. Seu babydoll esvoaçante mostrava a barriga saliente. Era Cleideonora, a misteriosa cliente de Giuliano que se aprontava para o encontro. Ela também alimentava sonhos de encontrar um amante jovem para aplacar sua solidão. Em sua imaginação idealizava o Lover Boy um moço viçoso e sedutor. Dono de um corpo moreno latino, com tatuagem estampada no braço musculoso, cheio de amor para dar. Aquela era a primeira vez que contratava um garoto de programa. Seu marido havia falecido quando muito jovem. Desgostosa da vida, sem filhos, aquietou-se em seu apartamento até a velhice chegar. Naquele dia estava decidida a mudar de vida e recuperar o tempo perdido.
Chegada a hora marcada, toca a campainha do apartamento de Cleideonora. Apressou-se ansiosa em dar umas esborrifadas de perfume sobre a cama e correu para atender a porta:
Quem é? Perguntou ela.
Seu Lover Boy. Respondeu ele.
Parecendo ouvir um concerto de violinos, ajeitou o busto, fez uma pose sensual e com olhar matreiro abriu vagarosamente a porta. Giuliano e Cleideonora ficaram frente a frente. Foi uma decepção mútua, estampada no semblante dos dois amantes. Os violinos que Cleideonora ouvia tocaram notas desarmoniozas e dissonantes, soltas numa desafinada melodia, cujo som foi se apagando para dar lugar à indignação:
Você é o Super Lover Boy? Você está mais para velho bode do que para Lover Boy. Pode ir embora, estou cancelando o pedido.
Encarando definitivamente o personagem, Giuliano asseverou:
Desfeito o negócio? Não quero nem saber. Atendi seu chamado e fiz o deslocamento, exijo o pagamento integral, sua velha caloteira.
Assim começou uma discussão ali na porta do apartamento. Com medo da vizinhança, Cleideonora sussurra fazendo sinal para que o Lover Boy entrasse no apartamento. Queria a discussão longe dos ouvidos dos vizinhos. Uma vez lá dentro, lançaram ofensas reciprocas até que Cleideonora perdeu a razão e partiu para cima de Giuliano na tentativa de arranhá-lo. Ela sofria de labirintite e perdeu o equilíbrio. Caiu sobre a mesa lateral da sala derrubando o abajur, que espatifou-se no chão. Na tentativa de esquivar-se do arranhão, Giuliano tropeçou no tapete e caiu sobre o sofá que tombou. Lover Boy foi arremessado e saiu rolando pelo chão.
Cleideonora não conseguia manter-se em pé. Precisava de seu remédio da labirintite. Giuliano deu mal jeito na coluna e andava com dificuldade. A pedido de Cleideonora ,Giuliano foi até a cozinha pegar o remédio de labirintite e um copo d´água. Depois ajudou-a a sentar-se na poltrona do sofá. Enquanto isso Giuliano tomou um analgésico anti-inflamatório, depois que Cleideonora agradecida, lhe prescreveu o medicamento.
Enquanto se recuperavam daquela batalha, Cleideonora perguntou qual o motivo dele tornar-se um garoto de programa? Então ele contou sua triste história e disse que aquele era seu primeiro dia de trabalho nessa nova atividade. Do mesmo modo ele perguntou qual a razão dela seguir essa vida de desfrutes? Ela também contou sua história triste. Disse que aquela era a primeira vez que havia solicitado esse tipo de serviço.
Ficaram horas conversando, mal perceberam o tempo passar. Ambos descobriram que além de uma triste história, tinham muitas outras coisas em comum. Com isso se enamoraram. Deitaram-se na cama de casal e passaram a noite juntos, abraçadinhos, apenas olhando-se nos olhos, parecendo que um cuidava do outro. Dormiram embalados pelo silêncio eloqüente daquela noite inesquecível. Tanto se reconheceram um no outro que resolveram morar juntos.
Giuliano e Cleideonora descobriram que o amor desabrocha também na terceira idade. Na verdade não há idade nem para amar nem para recomeçar, pois cada dia que nasce é um novo recomeço e uma nova oportunidade para amar. Descobrir o amor na terceira idade é como ler um livro começando pelo fim, surpreendendo-se com o início da estória.