quarta-feira, 29 de abril de 2009

O PÓ DA TERRA

O PÓ DA TERRA
*Por MMendes

As paredes daquela velha igreja estavam impregnadas de história. Doze pilares sustentavam sua abóbada adornada por desenhos magistrais. O ar estava impregnado de um elemento místico. O chão era feito de largas tábuas de jacarandá maciço, todas gravadas com números pirografados. Murilo entrou humilde e seus passos ressoavam pelo chão de madeira que rangia a cada passo. Era como se o chão lançasse murmúrios de uma multidão cadenciados pelo ritmo das passadas.

Quem conhece o costume sabe, embaixo de cada uma daquelas tábuas do chão da igreja, jazia enterrado um fiel que trabalhou e morreu naquela comunidade. Aquele era um solo sagrado, onde se guardava aqueles que pertenciam a Deus. Murilo conhecia o costume. Seus ancestrais estavam ali, dormentes, aguardando o juízo final. Foi até a igreja porque estava com problemas no casamento. Buscava uma fagulha de luz. Na realidade acho que estava com problemas existenciais por causa da proximidade dos quarenta anos. Em momentos como esse, nos sentimos entre a vida e a morte. Aquela velha igreja era o ambiente apropriado. A própria representação do limbo.

O sacrário ficava ao lado da nave central. Uma pequena sala iluminada por uma tênue fonte de luz. Sobre uma mesa de madeira que ficava na entrada, estavam depositados um crânio humano e uma ampulheta lembrando a efemeridade da vida terrena em contraponto com o sagrado que é eterno. Os povos antigos encaravam a morte com naturalidade e símbolos como esses não causavam temor, nem espanto ou ojeriza. Hodiernamente tememos a morte. Amedrontados sempre fugimos do assunto. Pensamos que esse dia nunca irá chegar. Com isso nos tornamos pródigos e esbanjamos a vida toda. Acreditando que viveremos para sempre destruímos valores eternos a ponto de comprometermos a própria vida do planeta. Para os antigos daquela comunidade, a morte era o complemento, a coroação da vida. Havia um profundo respeito aos mortos, quase um culto aos ancestrais.

Depois de percorrer a nave central da igreja e fazer a reverência costumeira, Murilo caminhou para a sala do sacrário e ajoelhou-se em oração. Sentia-se frágil e perdido. Brotou vontade de rezar a oração Ave Maria. Foi a primeira oração que aprendeu com sua avó Isolda, quando ainda era bem pequeno. Achava-se pequenino. Quem sabe, justamente por isso buscou consolo naquela oração de criança. Rezava desesperadamente a oração, uma após a outra, sem qualquer método ou propósito.

A medida que foi rezando, esvaziava-se de si pedindo luz. De repente um acontecimento insólito. Sem saber explicar como aconteceu, foi transportado para um lugar totalmente escuro. Uma escuridão diferente, como se um nevoeiro negro o envolvesse. Distante via apenas uma pequena estrelinha que se movia em sua direção. Quando a luz chegou mais perto, percebeu que era Nossa Senhora. Estava de costas, podia ver o manto azul celeste. Estava iluminada da cintura para cima. Não podia ver seus pés, apenas percebia que ela se movia lentamente em sua direção. Quando chegou a uma pequena distância virou-se. Suas mãos em forma de cuia seguravam delicadamente alguma coisa, tal qual como segura-se água.

Quando chegou bem perto, Murilo olhou naquelas delicadas mãozinhas para saber o que elas carregavam. Não havia nada, apenas luz. Maria carregava cuidadosamente uma porção de luz. Olhou para Murilo e continuou até que suas mãos penetraram seu peito. Continuou caminhando, enquanto entrava literalmente dentro do corpo de Murilo. Parecia que buscava guardar ali dentro, a porção de luz cuidadosamente carregada, até que desapareceu por completo.

Como acordasse de um sonho, estava de volta à sala do sacrário. Parecia ter sido um sonho, mas era viva a sensação de ter curvado o pescoço para olhar nas mãos de Maria. Envolvido naquela emoção ficou em dúvida quanto à realidade vivenciada. Mas era real. Teve uma visão. A luz que tanto pediu veio pelas mãos de Maria, intercessora dos homens. Ela havia colhido essa luz da própria fonte que jorra no meio do paraíso. Caminhava de costas para que seus olhos não ficassem cegos pela escuridão que envolvia Murilo.

Depois de um tempo Murilo levantou-se e caminhou para fora. Ao caminhar sobre o solo sagrado da Igreja, uma voz sussurrou em seu ouvido direito: “- Tu és pó e ao pó tornarás”.

Não, não era uma maldição. Era uma benção. Era um chamado de Deus para que Murilo abandonasse a idéia de separação, superasse seus conflitos e voltasse para sua família. A luz recebida de Maria abria-lhe os olhos, os mortos do assoalho sussurravam abrindo os ouvidos. Tal como o pó torna ao pó, havia entendido que deveria voltar àqueles a quem pertencia. O marido à mulher, o pai aos filhos.Lá fora o sol castigava os olhos, dissipando de vez a escuridão. Murilo levou a mão direita sobre os olhos como proteção. Seus olhos estavam desacostumados à luz. E assim voltou para casa caminhando sobre os cascalhos da rua. Cada pedra parecia nova, como renovado estava seu espírito.

Um comentário:

  1. Essa é a minha preferida,você e eu sabemos porquê.
    Mas ,relendo as outras crõnicas, posso fazer uma revisão de vida,uma releitura de tantos sentimentos.beijo

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