segunda-feira, 20 de abril de 2009

A MÁQUINA

A MÁQUINA
Por MMendes

Metido numa camisa de força seu corpo contorcia e corcoveava, o homem berrava:

- Soltem-me, chamem um advogado. Exijo um julgamento justo.

Quatro homens de branco tentavam segurá-lo firmemente. Dois o seguravam pelos pés e outros pelo tronco. Seus olhos arregalavam-se e sua boca espumava. Com muita dificuldade foi conduzido para dentro da viatura, que saiu em disparada com as sirenes ligadas.

- Essa prisão é ilegal. Onde está o mandado de prisão? Quero meu advogado. - Gritava o homem insistentemente até que lhe aplicaram um sossega leão. Ele apagou completamente. Quando acordou estava dentro da sala plenária do Tribunal. A sessão estava em andamento.

- Trouxemos o fujão de volta. - Disseram os homens de branco ao presidente daquela corte e retiraram-se do recinto.

O preso era um dos juízes de uma das varas daquela jurisdição. Havia fugido na tentativa de livrar-se do incomensurável volume de trabalho. Um verdadeiro Monte Everest de processos com sentenças e despachos atrasados. O ritmo de trabalho estava além de suas limitações humanas, não conseguia se amoldar às duras condições de trabalho.

O serviço acometido ao juiz era uma loucura, na literal acepção da palavra. Dezenas de audiências, dezenas de sentenças e centenas de despachos por dia. Estava obrigado a cumprir os exíguos prazos processuais e considerando o volume de serviço, não dava conta. Por isso tentou fugir em vão daquela jurisdição. Foi apanhado e agora seria submetido ao julgamento sumário de um processo administrativo.

A corte estava reunida, o processo devidamente instruído, o juiz teria julgamento imediato. Os desembargadores cochichavam entre si, enlouquecidos por uma severa punição ao infrator. De repente o presidente desferiu um golpe de malhete sobre a mesa e deu o veredicto:

- O réu foi considerado culpado de ineficiência. Os números do boletim estatístico revelam que sua produção foi insuficiente, acabando por comprometer o andamento da Máquina Judiciária. Condeno-o a julgar imediatamente todos os processos pendentes e colocar o serviço em ordem no prazo improrrogável de cinco dias.

Todavia, os membros da corte sabiam que seria impossível realizar o serviço dentro do prazo, considerando a capacidade de produção do condenado. Mas, ali estava envolvido o interesse público, o custo judiciário e aplicava-se a regra de que o interesse privado sucumbe ao interesse do Estado. Dessa forma decidiram tomar medidas para garantir a eficácia da condenação e melhorar a eficiência daquele organismo preguiçoso.

Determinaram ao meirinho que abrisse sua boca à força e ministrasse uma dose cavalar de um forte estimulante. Para garantir a fixação do juiz à jurisdição, evitando que fugisse novamente, ataram seus pés a uma corrente presa a uma bola de ferro. Retiraram a camisa de força, mas o amarraram sentado sobre uma cadeira. Para garantir que não dormiria, apesar do estimulante, ligaram um sistema de eletro-choque, caso vacilasse.

Os demais juízes de primeiro grau foram convocados para assistir a sessão e cada qual se comportava de maneira muita estranha. Um coçava a cabeça, outro dava gargalhada, outro chorava. Havia um que parecia ter o olhar perdido, indiferente a tudo aquilo, enquanto outro sentado gemia de pavor, encolhido abraçando as pernas.

Em seguida o levaram até a mesa munida de um computador, recoberta de pilhas e pilhas de processos. O estimulante começava fazer efeito. Os dedos do juiz digitavam com tanta velocidade que se podia ver fumaça saindo do teclado. As veias de suas mãos ficaram volumosas com o fluxo de sangue. O juiz tornava-se ofegante. Sua temperatura corporal aumentou provocando uma abundante sudorese que lhe escorria à face e molhava a roupa. Ainda assim, o meirinho lhe dava uns choques vez em quando, ordenando que aumentasse a velocidade.

O secretário do pleno debitava do boletim estatístico uma a uma as inúmeras decisões proferidas. A cada número o plenário e a platéia gritavam enlouquecidos:

- Mais um, mais um, mais um.

Depois de exatas 120 horas contínuas, o trabalho estava terminado. Sem qualquer energia vital o juiz faleceu sobre a mesa. As primeiras falanges dos dedos sumiram desgastadas pela frenética digitação. Os tendões e as articulações das mãos estavam em frangalhos. Os olhos estavam adornados por uma negra olheira. Nesse momento irrompe o recinto o médico psiquiatra daquele Tribunal:

- Seus loucos. O que vocês fizeram a esse pobre coitado? - Disse o médico apressando-se a prestar socorro, cujo paciente infelizmente jazia estirado no chão. O médico chamou por socorro e os enfermeiros de branco retornaram. Incontinente foram empurrando os desembargadores e os demais juizes em direção a uma porta que dava para um grande patio, afastando-os do morto.
Auxiliado pelos enfermeiros, o médico coloca o corpo numa padiola e dirigiram-se à viatura da ambulância, que estava no patio. Ao passarem com o defunto entre os juizes e desembargadores, registraram as reações mais imprevisíveis.

- Eu sou deus. - Gritava o presidente freneticamente.

- Eu quero números, quero números, quero números. - Repetia o corregedor sem parar.

- Eu sou a lei. - Berrava um dos juizes, ao lado de outros que diziam ser o Estado, a verdade, Napoleão, Jesus Cristo e por ai adiante.

A ambulância passava silenciosamente entre a multidão dirigindo-se ao portão de saída. Já não havia pressa, o homem estava morto.

O porteiro verificando tratar-se do médico psiquiatra, abre os portões. Deu passagem à ambulância que seguiu por uma estradinha a se perder de vista. Olhando para trás podia-se ver uma imensa construção cercada de um muro alto e branco, fechado por imensos portões de ferro. Sobre o portão podia-se ler: “Manicômio Judiciário”.

Aquele manicômio foi especialmente construído para abrigar os funcionários do Poder Judiciário que, por uma ou outra razão, perderam a razão e andavam perdidos nos labirintos da loucura. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

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