segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

A BAILARINA SONHADORA

ATO I: LUCINHA, A PEQUENA LUZ


Lucinha, a pequena luz que era seu nome, nunca andou. Aos olhos do mundo, ela caminhava, é claro, mas no universo secreto de sua imaginação, que vivia atrás dos seus olhos grandes e curiosos, ela flutuava em jetés e glissades. Em seu mundo fantástico, seu quarto era o palco da Ópera Garnier e a cozinha do Teatro Bolshoi. Não havia degrau ou ladrilho na casa que não servisse como um ponto de equilíbrio para sua próxima pirouette.
Lucinha não precisava de música; o ritmo acelerado da sua própria alegria, o bater do seu coração sonhador, era a orquestra perfeita.
O presente de aniversário de dez anos repousava na cômoda como uma promessa sagrada: suas primeiras sapatilhas de ponta, um rosa pálido, uma mistura do rosado ao céu ao alvorecer, com a névoa da manhã. Ela as calçava com reverência, sentindo a ponta de cetim frio no pé, a fita de seda macia que envolvia os tornozelos. Naqueles segundos, ela não era apenas uma menina. Era a rainha de gelo, o cisne branco, a ninfa da floresta.
Naquele final de tarde, o sol entrava de mansinho pela janela da sala, pintando uma faixa dourada no chão de madeira. Lucinha estava ali, no meio do palco improvisado. Seus braços de menina desenhavam arcos delicados, e o peso invisível de um tutu de lantejoulas brancas a fazia esticar a coluna, empinando o queixo com a dignidade de uma artista. Ela rodopiava e rodopiava, até que o mundo se tornasse uma mancha embaçada de cores, e só existisse a vertigem alegre, o voo. No final de tantos rodopios, atirava-se no sofá com a respiração ofegante, os olhos ardendo de paixão pela vida e um sorriso preso entre a realidade e o sonho.
Porém, de todos os seus rodopios, o daquele dia foi o mais completo. A vertigem alegre durou mais do que o esperado. Ela caiu exausta no sofá. O sono foi mais que um repouso; foi uma travessia. Fechou os olhos e o sono a embalou até o teatro dos sonhos. 

ATO II: O SONHO E O FANTASMA DO BALÉ

O rodopio final de Lucinha a levou para um lugar que não era o sofá. O cheiro familiar de casa sumiu de repente, substituído por uma mistura densa de poeira fina, veludo mofado e o aroma de maquiagem dos bastidores, com um leve toque de incenso e mistério. Ela não estava mais na sala, mas de pé sobre um palco gigantesco e antigo. As luzes da ribalta eram poucas e fracas, e o teatro era uma imensa escuridão forrada de camarotes vazios, como olhos sem pálpebras a observá-la.
As sapatilhas, as mesmas que adormeceram com ela, estavam firmes em seus pés, mas não era mais a menina de dez anos. Seu corpo estava mais esbelto e alongado, os traços mais definidos, e o tutu não era de lantejoulas imaginárias,  mas sim de camadas de tule branco e cintilante, que pareciam capturar a luz fraca e devolvê-la em faíscas delicadas, como se respirasse junto com ela. 
As cortinas se abriram. O espetáculo começava e ela sabia que precisava dançar. 
Foi no meio de um arabesque incerto que ela o viu. Não era o público, pois não havia ninguém no teatro. Era um moço. Não assustador, mas envolto em uma capa escura que parecia parte da própria noite do teatro. Ele estava no fosso da orquestra, subindo lentamente, com o rosto parcialmente escondido. Era o Fantasma do Balé, o dançarino esquecido, cuja alma só encontrava paz no silêncio entre os atos.
Ele estendeu a mão para ela. Era um convite mudo, não de terror, mas de uma profunda e infinita melancolia. Lucinha, acostumada a seguir a música de seu coração, não hesitou. Ela deslizou no palco e aceitou a mão fria daquele homem misterioso que a convidava para dançar. E iniciaram a dança da fuga.
Eles correram. Foi o pas de deux mais apaixonado e desesperado de sua tenra idade. O Fantasma a conduziu por corredores estreitos, escuras escadas em caracol, sempre para longe. Eles saltavam sobre cabos, desviavam de panos de cenário, o som ofegante da respiração de Lucinha ecoando nos tetos altos. Era a dança da vida que ele lhe oferecia, e ela a aceitou com a leveza de quem só conhece o sonho.
Em um salto para alcançar uma janela alta, um portal para a liberdade, Lucinha sentiu um puxão. A fita de seda de sua sapatilha direita se desfez, traiçoeira, e o clack seco da ponta atingindo a pedra foi abafado pela capa do Fantasma. Ela teve um instante de terror e hesitação. Quando tentou abaixar-se para recuperar a sapatilha, ele a puxou com urgência. A sapatilha era apenas um ponto rosa abandonado na escuridão. Eles continuaram, e no próximo giro apressado, tentando equilibrar-se com um pé descalço, pisou numa poça de água, encharcando de água barrenta a outra sapatilha. Não havia mais tempo para lágrimas ou arrependimentos. A fuga tinha que continuar. 
De repente, ao passarem sob um amontoado de tecidos no teto, um objeto pesado despencou. Uma antiga boneca de porcelana, com os olhos pintados e o rosto rachado, caiu diretamente nos braços de Lucinha. O choque do peso a fez cambalear, e, instintivamente, ela abraçou o objeto frágil. Nesse milésimo de segundo de hesitação e cuidado, sua mão escorregou da mão fria do Fantasma. A conexão se quebrou. A música parou. O Fantasma, agora apenas uma sombra solitária, desapareceu no negrume, e Lucinha, com a boneca em seus braços, caiu no silêncio. As cortinas se fecharam e a peça encenada chegava ao fim.

ATO III: O DESPERTAR FINAL

Lucinha acordou de súbito e ainda estava em sua casa. Mas ao sentar-se, percebeu que não era mais a mesma criança que havia adormecido no sofá. Era a mesma moça adulta do sonho. Ela havia dormido tanto tempo que os anos pareciam ter escoado entre aquele último vertiginoso rodopio e o aparente breve despertar.
Levou as mãos ao ventre. Seus dedos encontraram uma cicatriz fina, uma marca que definitivamente não estava ali antes.
Ao lado do sofá, sentada com a compostura de quem espera o trem, estava uma senhora de aparência impecável e enigmática. Seus olhos tinham o brilho de quem viu o mundo de cima, e na mão ela segurava um guarda-chuva de cabo de papagaio. Era Mary, quem havia velado por Lucinha durante todo o tempo enquanto ela dormia e sonhava.
A senhora sorriu espalhando magia pelo ar: “Eu cuidei de você enquanto você bailava em seu sonho, Lucinha. Foi uma longa temporada. Mas, enfim despertou.”
Lucinha olhou para os pés. Um pé estava descalço e no outro, podia sentir o cetim frio da da sapatilha encharcada e gasta. 
Nessa hora um choro de criança invadiu o lugar. Mary levantou-se, abrindo seu guarda-chuva de cabo de papagaio: “Agora, é a sua vez de cuidar. Ele viverá sonhando em brincar. E você, Lucinha, viverá ensinando-o a andar.”
O corpo de Lucinha não tinha mais a leveza do tutu imaginário, mas um peso diferente, uma nova gravidade. Mary acenou, e com um pequeno pulo, o vento a levou para fora da janela, para o céu. Lucinha ficou olhando a silhueta diminuir. A vida real era a grande peça que esperava. 
A menina que rodopiava até perder o fôlego despertava adulta, marcada, transformada. De bailarina, tornara-se coreógrafa: não mais intérprete dos movimentos alheios, mas criadora da vida que precisava guiar. Caminhou com delicadeza até o berço e, ao tomar a criança em seus braços, viu novamente a cortina do palco se abrir novamente, mas desta vez, para a história que ela mesma escreveria, passo a passo, ensinando o filho a rodopiar, dançar, bailar e sonhar, e a entender que alguns sonhos deixam cicatrizes, mas que ele não tivesse medo de despertar e mantivesse sempre acesa a coragem de carregar as cicatrizes e continuar a caminhar.

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