quarta-feira, 30 de abril de 2014

O muro da caveira



O MURO DA CAVEIRA
*MMendes


Deserto escaldante, nenhum sinal de vida ao derredor a quilômetros de distância. Mas, a vida estava lá, oculta, resistindo ao calor. Cobras e lagartos se escondiam sob a areia cálida, buscando conservar a escassa umidade. Nenhuma sombra. Os ventos contra-alísios dissipavam as escassas nuvens. A areia fervia como inferno e rangia seca calcada pelos pés do andarilho, que não tinha um lugar sequer para descansar. Aquele lugar de pedras corroídas e dunas que serpenteavam com o vento, também era o local ideal para a preservação dos corpos mumificados pela aridez.

Na desolação daquela dura caminhada lembrou-se de um sonho de infância. Caminhava  no meio da floresta por uma trilha com outras crianças entoando hinos, até deparar-se com uma muralha de pedra, onde havia uma toalha estendida, cujas manchas de sangue imprimiam um rosto. Ajoelhou-se diante dela prometendo ser fiel a Deus até os confins do universo. Aquela lembrança caiu como um oásis e refrescou sua alma naquele momento.

Passo a passo, nada no horizonte. Apenas calor candente de sol abrasador. O brilho de seus olhos ciano distinguia-se do azul celeste, tão somente para garantir que aquela paisagem aterradora não o incorporasse definitivamente de corpo e alma, sob sete palmos de areia.

Quando seu olhar se desprendeu da memória fixando-se na realidade, viu logo ali à frente uma imensa muralha que dividia o mundo ao meio, de norte a sul, da terra ao céu. Era impossível continuar. Reparou que havia alguém sentado em frente à única porta que havia naquele paredão. Aproximou para pedir passagem. Não era um homem, mas sim uma criatura sobrenatural. Estava sentada no último degrau de uma escada de três degraus. Atrás dele, ao invés de uma porta, um arco de crânios humanos presos na parede desenhando um portal. Mas não havia passagem. A criatura de hábito talar vestia-se com um tecido rude, revelando pobreza, desapego e humildade. Tinha a cabeça coberta por um capuz e a cintura cingida por uma corda de sisal. Era com certeza uma caveira, uma caveira viva. Podia-se ver a ossada de seus pés descarnados entre cobertos pelo hábito e os ossos dos punhos das mãos, que se escondiam dentro das longas mangas da vestimenta.

O andarilho pensou: “Estou cara a cara com o julgador dos homens, aquele que venceu a morte e ressuscitou dos mortos. O guardião da porta do céu e da terra”.

Os crânios do portal sugeriam que ninguém passaria vivo para além dali. Apenas Ele que venceu a morte e conheceu os dois lados, aquele que viu face a face o rosto de Deus. O muro era o fim da trilha, o fim da vida. Do outro lado a promessa do recomeço, de uma nova vida.

- Pelo amor de Deus, me deixe passar. Tenho sede, tenho fome, meus pés estão em frangalhos. Meu couro está castigado pelo calor e pela aridez desse deserto. Suplicou o andarilho.

- Você foi o número três, depois foi o número seis. Agora você é o número sete. Disse a criatura imóvel diante do andarilho.

Aquele que andava como caça fugitiva a esconder-se da morte, recordou de um segundo sonho em que havia sido perseguido pelo demônio. Estava com seis amigos numa casa com vários cômodos. O ar da casa era esfumaçado e peças de ouro dispersas pelo chão. O diabo estava lá, sequestrando um a um seus amigos. Sabia que eram seis amigos, mas de fato não viu nenhum. Talvez fosse ele próprio todos sete. Rezava para que não chegasse sua hora. Todos os amigos sumiram e estava só com o terror. Pedia a Deus proteção, até que abriu uma porta e deparou-se com o coisa ruim sentado numa cama de casal. Seu corpo cintilava como ouro polido, sua face derretia-se como plástico inflamado, adornado por quatro chifres que fagulhavam. Acordou na hora “H”, como que arrebatado do inferno, salvo pela providência divina que o despertou.

Nesse momento o andarilho reparou que a criatura segurava um cajado que tinha no alto uma serpente dourada. Mais curioso ainda é que não deixava sombra. Naquele deserto sua alma congelou de medo. Afinal, aquela criatura era o Filho de Deus ou o satanás, o anjo decaído? Qual seria enfim sua sorte?

Nesse momento a criatura se levantou e baixou seu capuz, revelando um crânio de cristal, através do qual a luz do sol do deserto penetrava, criando um efeito multicolorido de efeitos prismáticos. Todo iluminado, o crânio parecia pegar fogo, fazendo com que os orifícios dos olhos se tornassem muito brilhantes, criando um fluxo magnético através dos olhos, que abriram uma porta psíquica para uma região desconhecida do cérebro, uma porta para a verdade absoluta, que conectava a criatura ao viajante.

O fluxo do tempo ia e voltava como ondas do mar. O passado e o futuro se misturavam escrevendo e reescrevendo a história, como se as mesmas letras de um livro pudessem ser embaralhadas num arranjo matricial, escrevendo o passado e, “mutatis mutantis”, noutro arranjo escrevendo o futuro. Múltiplas realidades, múltiplos desfechos, histórias que podem ser contadas de várias formas, sem começo nem fim. Uma nova realidade abria-se diante de seus olhos e, uma infinidade de dúvidas e passagens bíblicas transitavam por sua mente.

Seria aquela criatura o Lúcifer, a estrela da manhã, a filha da alva que foi precipitada do céu, cortado por terra, acusado de debilitar as nações (Isaías 14:12)? Seria ele a serpente que ofereceu o fruto do conhecimento e abriu os olhos dos homens para o bem e para o mal?

Ou, ao contrário, seria Jesus apocalíptico que se intitula a resplandecente estrela da manhã, a raiz e a geração de Davi (Apocalípse 22:16)? E aquela serpente dourada sobre seu cajado? Seria a serpente que ofereceu o fruto do conhecimento a Eva? Ou, seria a serpente de metal construída por Moisés, a mando do próprio Deus, colocada sobre um poste para curar os que haviam sido picados por serpentes no deserto (Números 21:8), com o qual Jesus se equiparou (João 3:14-15)?

Seria possível que Lúcifer e Jesus fossem uma única pessoa? O início e o fim, o alfa e o ômega do ciclo de libertação e salvação do homem? Jesus seria Lúcifer regenerado, o filho pródigo que retornou para redimir-se pregado na cruz? Por ter ofertado o fruto do conhecimento, teria ficado responsável por dar também o fruto da vida eterna, sua carne e seu sangue, a hóstia sagrada? Afinal, somos responsáveis por aquilo que cativamos!

E o fato da criatura não possuir sombra? Seria um espectro? Ora, Jesus ressuscitado não é espectro (Lc 24:39)!

Então a criatura disse:

- Libertação não é livre arbítrio. O livre arbítrio é a capacidade de optar pelo bem ou pelo mal. Mas, só é livre aquele que sabe libertar a si e aos outros, de modo que ninguém escravize, explore ou destrua o outro. A liberdade é a escolha livre do amor e é a escolha pelo amor que leva à salvação.

Nesse instante o homem caiu por terra aos prantos. Aquele ser contraditório parecia conciliar o inconciliável, Deus e o demônio. Brotou naquele momento, a consciência de que o maior propósito de Deus é a reconciliação com todas as criaturas. Dar dignidade de filho de Deus a toda a criatura. Tinha que reaprender amar. Suas lágrimas eram absorvidas pela areia do deserto. A criatura postava-se em pé ao seu lado. Estendo sua mão de caveira, ordenou ao homem:

- Levanta-te, pois Deus te criou para viver. O deserto em que andas está dentro de tua alma, castigada pela dureza de teu coração preconceituoso e condenatório. A única coisa que religa o homem a Deus é o amor e o perdão. Não julgues para não serdes julgado. Não condenes para não serdes condenado. A justiça e paz são os frutos do amor. O perdão é a única coisa capaz de nos livrar do mal e do pecado.

- Se queres a vida eterna vá e caminhe até o portal da vida e da morte. Se teu coração for leve como uma pluma, tiveres amado a vida que recebestes gratuitamente de Deus com todo teu espírito, todo teu entendimento, todo teu coração, então passarás pela porta incólume. Caso contrário, morrerás para sempre.

- Se não estiveres preparado é melhor voltares a caminhar pelo deserto por mais quarenta ciclos, até que tenha conciliado teu corpo e tua sombra, para que à luz do deserto sejam uma só coisa, um só lado, sem avesso nem direito.

- A sombra é o indício da realidade que somos, da qual nos envergonhamos e reprimimos. Conciliar corpo e sombra exige iluminar a consciência sobre nos mesmos, os nossos potenciais e as nossas fraquezas, sem nos envergonharmos da verdade daquilo que somos. Quanto maior forem tuas máscaras, teus preconceitos, maior e mais densa será tua sombra.

- Quando alguma coisa não está bem, a vida nos convida a fazer uma mudança. Se não aceitamos a mudança surge o desconforto, a dor e a doença. Pensamos que dor e a doença são para serem eliminadas, curadas, quando na verdade são apenas sinais de que devemos mudar. O sofrimento é a escolha de não mudar diante da doença e da dor. O mal está em nós, nos nossos preconceitos, nos nossos olhos, nos nossos pensamentos, no nosso coração.

- Queremos ser fortes e enfrentar o sofrimento. Mas, esquecemos que o tenro broto e o frágil recém nascido é que se abrem a vida, enquanto aquilo que endurece e se fortalece está vivendo seus últimos dias: “aquilo que é tenro e frágil é aliado da vida e aquilo que é duro e forte é aliado da morte”.

Então, a criatura caminhou até o portal atravessando a parede como um fantasma. O andarilho sentiu medo, pois não se sentia preparado. Então, seguiu o conselho. Voltou para o deserto para conciliar-se consigo mesmo. Talvez um dia esteja preparado e quando esse dia chegar irá enfrentar novamente O Muro da Caveira.

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