domingo, 30 de dezembro de 2012

Reveillon

REVEILLON
*Por MMendes


Fim de ano,
fim de tudo,
findo mundo,
fiquei pasmo,
fiquei mudo.
Num segundo,
folia, foguetório,
gritaria, sanatório.
Fim do ano,
foi-se o plano.
Ano novo,
novo plano,
novo mundo,
tudo novo,
de novo,
num instante,
num segundo.

Tristeza


TRISTEZA
*MMendes
A tristeza existe sim, 
mas em mim, 
nos meus olhos 
que me põe imaginar, 
que à tristeza do outro 
é tão triste quanto a minha.
A tristeza existe sim,
mas nos meus olhos,
que se fazem tristes,
como que solidários ao outro olhar.
Na tristeza os olhos se encontram,
se reconhecem, se entristecem,
como se dissessem,
não fique triste assim,
pois tua tristeza,
também é o meu penar.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Saudade


SAUDADE

(Marco Mendes) 



Lembrança presente,
que mora dentro da gente. 
Borbulha no peito, 
exala pelos poros, 
revestindo-nos de vontade 
que não dá prá saciar. 



Saudade de verdade,
traz o passado à vida.
Mas como tudo o que passa,
volta escuridão onde havia cor,
Lembrança outrora de alegria,
agora um sentimento de dor.



Sentir saudade viva, 
como disse o cantor, 
faz tudo ressuscitar.
Então viva a saudade, 
palavra que só existe aqui, 
em nenhum outro lugar.



Saudade dos amigos,
Saudade das risadas,
Saudade de tudo, tudo mesmo.
Saudade, saudade e mais nada.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

O amor inesperado


O AMOR INESPERADO
* Marco Mendes

Hoje estou vazio, doei tudo a quem mais precisava. Nada sobrou para mim, perdoei todos os que me deviam. Hoje olhei para os outros, muito mais que para mim. Hoje agi, muito mais do que falei (e olha que eu gosto de falar!). Hoje me entreguei, sem nada em troca exigir. Hoje eu parei, estacionei. Acho que não há mais para onde ir, sinto que já cheguei, construí um novo olhar. A partir daqui nascer de novo, reaprender a andar.

A notícia me tomou de surpresa e me esvaziou. Não sabia o que dizer e queria não pensar. A notícia me invadiu e remexeu lembranças e sentimentos com violência. Me vi no meio do nada rodeado por bolhas de memórias que flutuavam a minha volta. Percebi que eu estava fora de mim, fora do tempo, sem chão e sem teto. A notícia me derrubou, cai das pernas e meu corpo lá ficou. Um espírito me invadiu, me acalmou, me consolou. Esse espírito me preencheu e anunciou a chegada de algo inovador. Algo que tiraria meu conforto e me faria sair da posição de onde estou. Eu aceitei, me levantei, postei-me diante dele e proferi: "Seja feito, assim. Serei intrumento desse amor".

Ele veio como o inesperado, caminhando leve pé ante pé, na aurora rompendo a noite, chegando manso como o dia. Batendo as portas do coração, presenteando-me com o milagre da vida. Com os braços abertos te recebo com muita alegria. Dar-te-ei abrigo nesta moradia. É o próprio Deus quem chega, pelo portal de abril em Maria, com braços estendidos, espero, abraçar a vida que Deus cria.

O cheiro do Natal


O CHEIRO DO NATAL
* Marco Mendes


Uma curiosa esperança pairava no ar. Uma promessa de presente se espalhava, ainda que a garantia fosse apenas a presença das pessoas, a reunião da família, que espargia alegria contagiante e inebriava o olhar. O som de harpas cristalinas perfumavam o mês de dezembro, exalado do velho rádio de válvulas que ficava sobre a cristaleira. Havia mesmo um cheiro novo no ar, um cheiro de Natal a gritar.

A religiosidade enfeitava os corações, afagava o ano difícil, com a promessa de que, uma nova luz estava prestes a brilhar. As Três Marias passavam a noite pelo céu a orar, clamando por caridade acolhedora, que partilhasse a felicidade com os mais pobres, para suas dores ajudar a refrear.

Nas memórias da infância guardo aquele cheiro extraordinário, perfume especial que sinto, quando o Natal está para chegar. Ainda olho para o céu do mês de dezembro, para ver as Três Marias passarem em prece, sem pressa, orando para que os homens não deixem essa magia acabar. Agora adulto e maduro que sou, por quase um mês a cada ano, no mês de dezembro, ainda sinto um cheirinho de Natal pelo ar. Nesse mês meu coração de criança volta a pulsar. Aos meus filhos, ensinei a alegria e dividi o prazer de presentear felicidade como forma mais pura de amar.

Seja por coincidência, obra do destino, quiçá providência divina, neste ano haverá ainda mais Natal em minha casa. Segui uma estrela errante que pairou sobre minha morada. Minha filha, que de fato se chama Maria está grávida, esperando dar à luz um menino.
Acho que agora sou uma espécie de rei mago trazendo proteção, amor e segurança. Minha casa está com uma forte fragrância de Natal a nos perfumar.

Matemática do amor


MATEMÁTICA DO AMOR
* Marco Mendes


Na mansidão,
Se deram as mãos.
Entre olhares
Invadiram-se,
Chegaram ao coração.
Dividiram-se,
Somaram-se,
Multiplicaram
Até chegar a três.
No quarto se abraçaram,
Até chegarem aos oitenta.
Um deles se foi,
O outro chegou aos noventa.
Ao infinito entregaram-se,
E viveram eternamente juntos.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O ouvido da flor

O OUVIDO DA FLOR
* Marco Mendes


Determinada mulher andava amargurada. Passava por tempos difíceis. Sua amiga não aguetava mais os lamentos e chegou ao ponto de evitá-la. Um dia a mulher comprou um vasinho de flor e o depositou na janela da cozinha. A mulher amargurada, passou a conversar todos os dias com a flor.

A amiga não entendia, porque todos os dias a outra conversava com uma flor. O fato é que essa flor cada dia era mais bela. Curiosamente ao invés de buscar o sol de fora da janela, se voltava cada vez mais para dentro da casa, como que inclinando à oradora.

A amiga curiosa, perguntou o que a mulher dizia àquela flor. Ela respondeu: - Nada digo, minha amiga. Apenas reclamo minha dor.

A amiga entendeu, que a flor era na verdade o ouvidor. Não tinha, a pobre coitada, para quem desabafar. Conversava então com a flor, tentando aliviar.

Deus está em todo lugar. Quando a flor inclinava-se para a mulher, Deus na verdade é quem estava a escutar.

Nesse instante compreendeu que estava em falta com a amiga, pois quem inclina o ouvido para o outro, pratica um grande ato de amor.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Inspiração


INSPIRAÇÃO

Poesia é assim, 
soltar-se, arremessar-se,
pular na corredeira da vida,
sem medo de se perder.
Tornar-se fluído, líquido,
correr com as águas,
inspirar e deixar-se levar.
Tem que ser de ligeiro,
soltar palavras sem pensar,
pense depois, sinta primeiro,
palavras no lago arremessar.
Olhar, sentir, observar.
Nada de refletir, filosofar.
Soltar-se, 
perder-se até afogar.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

O despertar do sol




O DESPERTAR DO SOL
Autor: Marco Mendes

Há uma lenda que diz que o sol nasce para ver o galo cantar. Se o galo parar de cantar a noite se eternizará! Canta galo, fazendo o sol raiar, despertando a pradaria, bicharada, a alegria. Canta galo, despertando a novidade do amanhã e o porvir de cada dia. Canta galo! Que teu canto nos motiva, nos cativa e nos enche de alegria.
O galo chegou trazendo o sol no seu cantar. O sol nada mais que alimento faz o espírito despertar. O galo então festeja, fazendo parecer que é a vida quem cacareja, enquanto os raios de sol envolvem com carícia, montes e pradarias, terra águas e florestas, convidando ao despertar. E a alma da natureza em algazarra, gritaria, voa fazendo festa: - A poesia chegou! Corram acordar o poeta.

Na bagunça da vida eu me vi



NA BAGUNÇA DA VIDA EU ME VI

*Marco Mendes


Revirando as gavetas das memórias

encontrei tempos perdidos, rascunhos mal escritos,

coisas inacabadas.

Fui relendo de vagar, para não desarrumar a bagunça

da desordem que montei para justificar

o que não compreendi.

Nas linhas sobre as quais eu escrevi,

nem a caligrafia reconheci.

Agora vejo que, a cada palavra lançada sem maturidade,

me emaranhei nas tortuosas linhas,

fechei as portas, me tranquei, prendi.

Hoje releio a vida de óculos. A miopía? Corriji!

Do embaraço me soltei, libertei a minha alma

que ainda não voou para além do horizonte,

não porque eu impedi.

Mas, porque entendeu que havia algo por fazer,

consertos, reparos dos danos que cometi.

Me perdoe oh minh´alma!

Foi sem querer que nos arquivos das incompreensões,

sem justiça e sem razão, eu me escondi de ti.

Pantaneiro no Rio


PANTANEIRO NO RIO
*Marco Mendes

No mato, rios temos aos montes,
Sucuri, onça, vida de pantaneiro.
Pastagens, cerrado, muitas fontes.
Belezas mil brotando o ano inteiro.

Pensei conhecer a cidade do Rio,
mas, tenho calafrio só de pensar.
Moro aqui no coração do Brasil,
onde arrastão é traia de pescar.

No coração cultivo o amor pelo Rio,
tantas vezes ferido e abandonado,
tráfico, pobreza e cachorras no cio.
Mirando, não se pode ficar parado.

Ainda não conheço o Rio de Janeiro,
Mas quem sabe o desejo me ataque?
Trabalho e economizo o ano inteiro e
como uma cascavel pra fazer sotaque

Idas e Vindas


AS IDAS E VINDAS
*Marco Mendes

Quando saio de casa,
Sinto-me tanto estranho,
um pássaro sem asa,
ou ovelha sem rebanho.

Fico horas pensativo,
O silêncio a escutar.
Talvez menos altivo,
olhando o tempo passar.

Paixões ensandecidas,
violaram minha alma,
hoje refém passiva,
desse amor que me acalma.

A fúria foi-se embora,
posso agora perceber,
amarguras da aurora,
são paz no entardecer.

És uma flor, eu o terreno,
És o início, eu o fim.
és um riacho sereno,
que deságua sobre mim.

Tua água refrescante,
diminui o meu arder,
meu espírito conflitante,
aquieta-se ao te sorver.

Quieto sinto profundo,
que és muito em mim,
és uma parte do mundo,
perfumas o meu jardim.


Passos Perdidos



PASSOS PERDIDOS
*Marco Mendes

Meus dedos aguardam as teclas uma a uma.

Alguma coisa dentro de mim vem do funda da alma,

sugada pelas raízes da vida.

Não me encontro. Passo e repasso as fotos,

passo e repasso os passos e não me acho.

Tenho a forte impressão que não sou mais daqui.

Quando o carro me leva, só trabalho. Esqueço de viver.

Quando volto, dizem que não pertenço a esse lugar.

Se não pertenço a esse lugar, para onde irei então?

Preciso reconstruir a estrada, preciso de um despertar.

Preciso plantar raízes nalgum outro lugar,

antes que a vida se vá e esqueça de me levar.

Girassol




GIRASSOL

Poema dedicado ao meu pai


* Por Marco Mendes


Pai, desde a aurora de minha vida

sigo teu caminhar como um girassol. 

No teu zênite me roubaste a sobra, 

me desnudou perante os olhares da vida. 

Foi ai que aprendi a ser eu mesmo, 

sem medo dos olhares esguios.

Os anos marcam teu ciclo,

do amanhecer, pelo vespertino ao entardecer. 

Quando a noite chegar tu não te apagarás, 

mas, eu sim ficarei no escuro. 

Desesperadamente busco imitar tua beleza, 

para jamais esquecer-me de tua luz. 

Em minhas pétalas amarelas 

se vê tua coroa flamejante, 

envolvendo todo o disco solar. 

Absorvo teu calor e já tenho sementes. 

No dia em que eu me for, 

germinarão sobre a terra fértil

que crescerão a te admirar.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

A caixa preta



A CAIXA PRETA

* Por Marco Mendes


Minutos antes do início da sessão, os desembargadores foram até a salinha para vestirem as respectivas togas. Conversavam sobre diversos assuntos até que algo inusitado ocorreu:
- As togas sumiram! Gritou um desembargador.
- Como assim, as togas sumiram? Perguntou o outro.
- Sumiram mesmo! Desapareceram!
O sumiço das togas criou o maior burburinho entre os desembargadores, que especulavam sobre o assunto. Até o operador da mesa de vídeo, que assistia tudo da sala de controle pelo sinal da câmara de vigilância, instalada dentro da sala das togas, tomou um susto com a gritaria e sem querer esbarrou na xícara de café que caiu sobre o painel provocando um curto circuito.
- Terá sido furto?
- Um atentado contra o pleno!
- Um confisco do CNJ!
- Um ataque do Executivo! O início da guerra entre os poderes da república!
- Excelências! Excelências! Vejam o que mandaram entregar aos senhores. Disse o Secretário do Pleno adentrando à sala.
- Uma caixa preta? Quem enviou? Perguntou o Presidente do Tribunal.
- Não sei não Excelência. Só sei que mandaram entregar com urgência. Afirmou.
- Que coisa sinistra! Recebemos uma caixa preta no exato momento do sumiço das togas.
- Não toquem nessa coisa! Pode ser uma bomba! Gritou um dos membros daquela corte.
- Chame a Polícia Federal! Chame a Polícia Federal! Gritou um outro.
O Secretário tomou o telefone e ligou para a Superintendência da Polícia Federal. Comunicou o atentado à bomba e pediu urgência.
Em questão de minutos o esquadrão anti-bombas ingressou na sala. Os desembargadores comentaram sobre o sumiço das togas e acerca do recebimento a estranha caixa preta. Inteirado dos fatos o policial pediu que os desembargadores se protegessem, pois iriam desarmar a bomba. Três correram para fora da sala e observavam as atividades espiando da porta. Outros dois correram para debaixo da mesa. Outro se escondeu atrás do armário de aço e outro deitou no chão com as mãos na cabeça.
O esquadrão anti-bombas começou a operação com muito cuidado. Desatou os nós do laço que envolvia a caixa e com muito cuidado retirou a tampa.
- Minha nossa! Gritou espantado o policial ao olhar para dentro da caixa.
- São apenas as togas de vossas excelências. Nada de bomba.
Constataram que as togas tinham sido mandadas à lavanderia por uma das servidoras, que se esqueceu de avisá-los. Com atraso a lavanderia mandou as togas diretamente para a sala no horário da sessão plenária.
- Bom, pedimos desculpas pelo mal entendido. Disse o Presidente do Tribunal aos policiais.
- Não tem de quê, Excelências. Estamos sempre à disposição. Precisando é só chamar. Depois disso o esquadrão e bombas retirou-se.
- Nossa! Que susto. Ainda bem que não passou de um mal entendido. Concordaram os magistrados.
Ao tirarem as togas da caixa notaram um bilhete no fundo:”Desculpem a demora na devolução das togas. Havia muitas manchas de difícil remoção, nem todas puderam ser removidas totalmente. Encontramos algumas cédulas de papel moeda no bolso de uma delas. Não sabemos a quem pertence, por isso deixamos no fundo da caixa para que decidam a quem deva ser entregue. Sugerimos que lavem as mãos antes de usar a toga, evitando que sejam manchadas novamente. Atenciosamente, a lavanderia”. Nenhum dos desembargadores quis ficar com o dinheiro, temendo que se pudessem lançar suspeitas sobre sua probidade. Depois de deliberarem sobre o destino do dinheiro, resolveram deixá-lo dentro da caixa e lacrar a tampa.
Quando foram colocar as togas tiveram outra surpresa. As togas haviam encolhido. Não conseguiram vesti-las, tampouco abotoá-las. Em um ficou tão curta que mais parecia uma mini saia. Um barrigudo parecia vestir uma bata, em outro ficou como um corpete apertando as banhas. 
- E agora? Como vamos entrar na sessão sem as togas? Indagaram perplexos.
- Excelências! Excelências! Não temam. Disse o Secretário do Pleno.
- O poder do magistrado não está na toga. A autoridade se conquistada pelas virtudes da verdade, da humildade, sabedoria, serenidade e tolerância. Advém da coragem para enfrentar o mal que todos os homens devem naturalmente carregar consigo. O verdadeiro hábito que faz um magistrado é confeccionado com fios da ética, entrelaçados com os fios do compromisso, cortada no molde da responsabilidade e costurada pelas linhas da discrição. O valor do magistrado é conquistado por sua conduta e não pela elegância estética da vestimenta decorativa.
- Impossível entrar sem a toga. O regimento interno proíbe. Respondeu o corregedor.
- Como nos mostrar assim sem essa vestimenta? A toga negra recobre nossa fragilidade humana exaltando o poder do Estado. Sob ela assumimos a imparcialidade necessária aos julgamentos. Sem a toga não seriamos respeitados! Argumentou outro.
- Voto com o corregedor. Disse o mais novo deles.
- É melhor adiar a sessão. Sem toga, nada de julgamento.
O que não se sabia é que o curto circuito da mesa de controle havia liberado o sinal de vídeo para todos os lugares do prédio.  A câmera de vigilância da sala das togas transmitia tudo para o telão do plenário, computadores e monitores internos.
Quando o secretário saiu da sala e foi anunciar o adiamento da sessão, deparou-se com a platéia do plenário, advogados, interessados, estagiários, estudantes, às gargalhadas... morrendo de rir. O secretário olhou para trás e percebeu que o telão da sala plenária transmitia ao vivo tudo o que se passava na sala onde estavam os desembargadores.
Os servidores viram tudo da tela de seus computadores, os faxineiros, o público que andava pelos corredores, todo mundo assistiu a tudo pelos monitores espalhados pelo prédio. Havia gente rolando no chão de tanto rir.
Os desembargadores estavam muito envergonhados. Decididamente não havia “legitimidade social” para os julgamentos. Com isso foi anunciado o adiamento da sessão. Não demorou muito para o vídeo ser postado na internet. No tempo de apenas cinco minutos, o vídeo teve um milhão de acessos. Sintoma da Era Digital onde não há segredos nem intimidade. “Toda verdade será revelada” disse o profeta. Afinal, houve um resultado positivo em tudo isso. A conquista da tão festejada transparência pública!

terça-feira, 3 de julho de 2012

O professor que falava saturnês


O PROFESSOR QUE FALAVA SATURNÊS
Marco A Miranda Mendes




 Sente-se professor! Fique a vontade. Escrivão! Traga um cafezinho para nosso convidado. Aceita um cigarro?
 Pois é professor, temos aqui um pequeno problema. Vozes anônimas nos informaram que você foi visto em reunião com alguns camaradas bolchevistas. E isso é um problema sério na atual conjuntura. Dizia o Delegado do Doi-Codi de Alagoas, colocando os pés sobre a mesa, enquanto acendia um cigarro no escuro porão da delegacia. A luminária esticada por um fio balançava num movimento pendular, a única iluminação do lugar.
Sentado numa cadeira de madeira, no meio da sala, com uma mala de roupas no colo, o professor permanecia calado. Temia que tudo o que dissesse pudesse comprometê-lo, sabia que seu silêncio poderia condená-lo. “Se ficar o bicho come, se correr o bicho pega”... passava o pensamento como letreiro luminoso.
 Você é uma pessoa de sorte professor! Influente... conhece pessoas importantes que vieram interceder em teu favor. Ganhou a sorte grande professor! Mas, decididamente não pode permanecer mais nessa cidade. Pensei... pensei... pensei numa saída. Encontrei uma proposta irrecusável. Dizia o delegado soltando baforadas de seu cigarro.
 Nosso Estado precisa de educadores que contribuam para melhorar as condições de vida da população. O professor bem sabe que Alagoas ocupa o penúltimo lugar na educação, ganhando apenas do Piauí. Também apresenta o pior resultado da saúde. A esquistossomose ataca setenta por cento da nossa população, sem falar no crescente êxodo rural por falta de condições de sobrevivência no campo, além das péssimas condições das estradas comprometendo o escoamento da produção, sobretudo nos períodos chuvosos.
 A educação sempre foi o firme propósito de nosso Governador Lima Filho. Precisamos levar a educação aos confins de nosso Estado, educar nosso povo. Ai eu pensei que o professor poderia ser conduzido até o sertão alagoano, para ministrar aulas no Mobral. Imagine a notícia: Alagoas vence o analfabetismo! Com certeza isso traria investimento e melhora no crédito  junto ao estrangeiro. Dindim no caixa!
 Vamos enviá-lo a uma agradável cidadezinha no fim do sertão alagoano. Um lugarejo denominado “Cavalo Morto”, perto do município de Mata Grande. O que você acha da proposta professor? Perguntou sarcasticamente o delegado, enquanto o escrivão mostrando os dentes, rodava a manivela do “pau-de-arara”.
No dia seguinte, sem escolha, lá estava o professor na boleia de um caminhão FNM azul, que fazia frete para aqueles confins da terra. A viagem durou quase três dias de pernoite na carroceria do caminhão. Quando chegaram a Canapi, barba por fazer, roupa amarrotada, suja, o professor cheirava a bode.
Chegou no dia 19 de março, em meio a comemoração de São José, padroeiro da cidade. O secretário do Prefeito lhe deu acomodações e lugar para o banho. Enquanto o professor descia do caminhão, dois indivíduos, chapéu, terno branco, o vigiavam à distância.
 Achegue-se professor. Estávamos a sua espera. O governador passou um rádio para o prefeito avisando de sua chegada.
A noitezinha, em meio ao foguetório foi convidado a subir ao palanque montado em frente a Igreja matriz. O prefeito aproveitava o aglomerado e o foguetório para fazer um discurso. No meio do discurso o prefeito arenista anunciou a presença do professor:
 Meu povo! O Mobral chegou a nossa cidade. É com muita honra que anuncio a chegada do professor que tanto esperávamos. A educação é a base da prosperidade. Finalmente abriremos as portas de nossa escola para que todos possam aprender ler e escrever.
Os minguados atrativos financeiros para o magistério, a pobreza local e o trabalho de subsistência, não despertavam o interesse na população pela educação. A grande maioria da população era analfabeta. O professor não estava ali pelo dinheiro. Se não fosse a imposição do governo militar, com certeza estaria longe daquele fim-de-mundo.
Depois do discurso, fora do palanque, o prefeito teve uma conversa particular com o mestre:
 Professor! Se ensinar esse povo desenhar o nome considere cumprida sua missão. É um povo acostumado ao trabalho duro do campo, mãos grossas, não levam jeito para o lápis. O negócio deles é o cabo da enxada. Assinando o nome daremos o diploma de alfabetização e se tornarão eleitores. Meus eleitores!
Mas o professor era um homem dedicado, admirador do método de Paulo Freire, tão combatido pelos militares, acusado de tendências comunistas. Estava mesmo disposto a educar aquelas pessoas, levar-lhes o conhecimento, fazer perceberem a exploração em que estavam metidos e, um dia, quiçá, dela se livrassem. Diante do degradante comentário do prefeito o professor preferiu dar um sorriso amarelo e responder com o silêncio, sinal de reprovação.
 Senhor prefeito! Vou me retirar, pois preciso descansar. Amanhã começo a trabalhar. Preciso preparar a escola para receber meus alunos. Tenha uma boa noite.
 Boa noite professor. E cuide bem do meu gado!
Chegado o novo dia, depois de arrumar a escola o professor sentou-se junto à sua mesa  esperando dos adultos para as aulas do Mobral. Caiu a noite, esperou, esperou, esperou e ninguém apareceu.
No dia seguinte voltou a esperar os alunos, mas nada de nada. O desinteresse dos adultos levou o professor a abrir aulas às crianças. Logo no outro dia lá estavam eles, dois únicos aluninhos sentadinhos nas carteiras, olhos brilhantes, pés descalços, roupinha surrada. Criança é bicho curioso, necessita aprender, especular o mundo. O sorriso do professor denunciava seu contentamento. Tinha jeito com criança e logo cativou os meninos. Contou-lhes coisas sobre as estrelas, planetas, o sistema planetário. Terminada a aula as crianças foram embora, admiradas com tantas estórias sobre o universo.
Na manhã que se seguiu, indo para o ministério, viu um aglomerado de crianças em frente à escola. Ao verem-no chegando correram em sua direção, o cercaram pulando e gritando:
 Viva o professor! O melhor contador de estórias do universo. Viva o professor! E que professor não ficaria envaidecido com tanta festa? Fazendo algazarra, correram para a escola. Sentados, balançando os pezinhos no ar pediram:
 Professor conte mais estórias sobre o universo? Conte, vai? A gente quer saber mais.
Aproveitando o interesse das crianças, o professor pediu que se sentassem no chão, em torno de si, formando um círculo.
 Hoje vamos mais longe. Hoje é dia de contos e estórias inventadas sobre o misterioso universo.
Lá no espaço há muitos planetas girando em torno do sol. Tem um planeta com anéis que se chama Saturno.
 E como chamam-se os seres de Saturno professor?
 Chamam-se saturnianos. Falam uma língua estranha, o saturnês.
 E o senhor sabe falar saturnês? Perguntaram os pequeninos.
 Evidentemente! Eu sou mestre em saturnês. Sei ler e escrever!
 Ouvi dizer que um dia os saturnianios invadirão a terra e quem não souber ler e escrever saturnês será devorado.
 Nossa professor! Então ensine a gente a ler e escrever saturnês. Não queremos ser comida de saturnianos não.
Depois de muitas estórias, lá pelo meio dia, a aula chegou ao fim. As crianças saíram animadas para aprender saturnês, impressionadíssimas com as estórias. O professor juntou seus livros. Enquanto fechava a escola, olhava as crianças voltando para casa numa prosa sem fim.
Caiu a noite e o professor se recolheu. De madrugada acordou com um alvoroço em frente ao seu quarto. Ao abrir a janela deparou-se com uma multidão de pessoas, homens e mulheres. Ao elevar o lampião em sua mão, notou que eram os pais das crianças que freqüentavam a escola.
 Professor, você precisa nos salvar. Não queremos ser devorados pelos saturnianos. Queremos aprender a ler e escrever saturnês. Nos ensine pelo amor de Deus.
Os pequeninos comentaram com seus pais sobre as aulas e as estórias do professor. Aquele povo ignorante não soube distinguir a fantasia da realidade e ficaram aterrorizados com a possibilidade dos saturnianos invadirem a terra. O professor até pensou em explicar-lhes que tudo aquilo era um terrível engano, mas a população não lhe deu oportunidade. Carregando tochas na mão os homens praticamente intimaram o professor a ensinar-lhes saturnês. Sem condições de se explicar, acabou por aceitando ensinar-lhes saturnês.
No dia seguinte, a sala do Mobral estava completamente lotada. Os adultos estavam ansiosos pelo ensinamento. Foi então que o professor teve uma idéia genial: ensinar-lhes português dizendo que era saturnês. Afinal, aquele povo não saberia distinguir uma coisa de outra. A partir daí os alunos do Mobral nunca mais faltaram a nenhuma aula e foram sendo alfabetizados dia após dia.
Enquanto isso, na capital corria rumores de que os comunistas invadiriam o Brasil. Que havia uma base russa instalada clandestinamente numa fazenda próximo a Mata Grande, prontos para iniciar uma guerra química. Esse boato deve ter saído da boca dos olheiros do governo militar que estavam em Canapi, observando o professor. Penso que acharam estranho, que de repente, os adultos ficaram tão interessados nas aulas do professor, uma espécie “revolução bolchevista” a eclodir no sertão alagoano. Daí o boato, que levou o governador a deslocar uma equipe de militares para investigar os fatos.
Foi assim que, na mesma semana, algo inusitado aconteceu no distante sertão de alagoas:
 Que barulho é esse que vem do céu, professor?
Correram para a janela e viram um helicópetero com o farol aceso circulando a escola.
 Socorro professor! Socorro professor! Gritavam desesperados os alunos, pensando que eram os saturnianos chegando para devorá-los.
Quando os alunos tomaram coragem e saíram da sala, se depararam com o professor conversando com um grupo de militares vestidos com roupas próprias para uma guerra química. Bota, macacão camuflado e máscara contra gás. Verdadeiramente pareciam mesmo seres extraterrestres. Um dos alunos carregava uma pequena lousa na qual escreveram com dificuldade, “sejam bem vindos ao nosso município“, ostentada de longe.
Depois da conversa com o professor, os militares convencidos do equívoco, decolaram a aeronave e foram embora. Os alunos gritavam aliviados, festejando o professor que lhes ensinou saturnês, salvando-os da desgraça.
A notícia do disco voador de Canapi correu mundo atraindo jornalistas e ufólogos do mundo todo, que vieram entrevistar os moradores:
 A terra há de me comê se eu tive mentindo, mas juro que vi o tá de disco voadô. Girava, girava sem pará. Desceu bem aqui em frente à escola, cumas luiz piscando. De dentro sairo saturnianos, que só num devoraro a gente porque o professô nos livrô.
 Os saturnianos, como era? Tinham zóios enorme, fucim de porco e andava como nóis.
O professor achou aquilo tão engraçado que não quis desmentí-los. Afinal era assim que o povo tinha interpretado os fatos. E quem disse que o governo militar não foi mesmo um governo alienígena, vindo para devorar o povo? Afinal, quantos foram os engolidos pelos porões da ditadura ou arremessados dos helicópteros em alto mar?
Acabou se afeiçoando aquele povo simples e carente, nunca mais quis retornar para a capital. Dali em diante todos os adultos da redondeza se matricularam na escola e também levaram seus filhos. O professor alfabetizou muita gente e mudou a cara daquele povoado.
            

segunda-feira, 11 de junho de 2012

O quadro do capeta


O QUADRO DO CAPETA
(*) Por Marco A. M. Mendes


Sozinho naquela cidadezinha do interior, Zé Braulino resolveu comprar uma tela e preencher o tempo com uma pintura. Não tinha dons artísticos não, mas sentia-se muito solitário, queria um pouco de companhia. Então, resolveu pintar uma família, ainda que fossem apenas figuras por ele próprio idealizadas, pintadas numa tela. Juntou os trocados, foi até a papelaria mais próxima, retirou o dinheiro embolado do bolso e comprou a tela, bisnagas de tinta e uns pinceis. Empregou ali todas suas economias.
Chegando em casa improvisou um cavalete, alçou a tela sobre ele e espremeu as tintas num prato velho. Sacou um dos pinceis como se fosse um espadachim e mãos a obra. Iniciou a pintura conforme lhe aprouvesse, começando a pintura por um belo menino. Um tanto pálido é verdade, sem o domínio das cores, exagerou no amarelo. Chamou-o de filho.
Vendo que a pintura ficou um tanto pálida, tentou corrigir com novas pinceladas. Sem  destreza do pincel derramou um pouco de tinta preta sobre a tela, respingando sobre o menino. Ficaram parecendo tatuagens. Zé Braulino ficou louco da vida, pois detestava tatuagens. A pintura não havia saído como queria. Contudo, estava determinado a pintar uma família e continuou sua obra. Para tentar corrigir o erro, na tentativa de disfarçar a primeira figura, idealizou pintar outra figura ao lado. Talvez as pessoas não prestassem atenção à primeira figura. Lançando o pincel sobre a tela fez a figura de uma menina, que chamou-a de filha. Essa nova figura não saiu de acordo com seus planos, ficou um tanto desfigurada. A menina não agradou o pintor, por isso levou uma surra de pincel.
Zé Braulino logo partiu para pintar uma terceira figura, a qual chamou de mulher. Afinal, já tinha dois filhos e eles não poderiam ficar sem uma mãe. Como havia de se esperar de um pintor improvisado, não afeto à arte da pintura, carregou demais no vermelho. Fez o rosto da mulher parecer uma pimenta. Como um espadachim enfurecido sacou outro pincel do bolso e lançou as cerdas contra a tela. Travou um medonho duelo com a mulher. Desse duelo respingou tinta por toda a sala, sujando sua roupa e até os móveis que estavam por perto. Até o cachorro que dormia sossegado ali perto saiu colorido. Procurava amoldá-la, reformá-la, para que ficasse tal qual era seu desejo. Mas, sua falta de habilidade com o pincel delineava uma figura surreal. Os respingos muticoloridos e traços indesejados mancharam e riscaram toda a tela. Curiosamente os respingos improvisados modelaram uma figura pequena e sorridente no canto esquerdo, que ao final Zé Braulino chamou de filhote. Batizou o quadro com o nome de “Família” e o pendurou nos fundos da casa, pois se envergonhava de tudo o que havia feito e queria esconder o quadro.
Deprimido com sua obra, embriagou-se. Num momento de fúria, na tentativa de destruir sua criação, ameaçou a tela com fogo, que ficou toda chamuscada. Passada a bebedeira resolveu vendê-la. Foi até a feira da praça central e ali a ofereceu por qualquer preço.
Nesse mesmo dia, passava pela praça um senhor pomposo, fraque e cartola. Zé Braulino não sabia, mas era o demônio disfarçado. Olhando aquela tela e o estado deplorável de Zé Braulino, ofereceu-lhe uma vaca em troca do quadro. Zé Braulino aceitou na hora, pois seria uma maneira de resgatar um pouco do dinheiro investido no material utilizado. Antes tivesse trocado o quadro por feijões mágicos, mas não foi assim.
A vaca era velha, não dava leite, logo adoeceu e morreu. Zé Braulino caiu em desgraça. Mulambento, percorria as ruas da cidade pedindo esmolas. Certo dia, revirando o cesto de lixo, encontrou um jornal que lhe chamou a atenção. Ficou surpreso quando viu a notícia de que seu quadro foi reconhecido arte contemporâneo de ponta. Tal qual Monalisa, as pessoas do quadro tinham um sorriso sinistro, um misto de choro e sofrimento, ora parecendo rir da sorte do pintor, ora parecendo chorar a desgraça do abandono. O ardiloso diabo sabia o valor do quadro desde o momento em que lançou os olhos. Pagou uma bagatela pela “Família” e agora tinha uma fortuna em suas mãos, enquanto Zé Braulino morria à mingua.
Desesperado Zé Braulino ajuizou uma ação contra o demônio na tentativa de desfazer a venda. O Juiz da causa era rigoroso e não gostou nenhum pouco do fato de Zé Braulino ter maltratado e abandonado a “Família”. Zé Braulino percebeu a enrascada em que se meteu e aceitou um acordo. Obrigou-se a comparecer todos os dias no museu do capeta para espanar o pó da “Família”, em troca de um lugar para dormir e um prato de comida.
O velhaco demônio, além de ficar com a “Família”, ainda se apoderou da alma de Zé Braulino, aprisionando-o num contrato que vigoraria por toda a eternidade. Esse é o destino de quem maltrata e abandona sua família e, ainda por cima, deixa-se levar pelo ardil do capeta.