─ Sente-se professor! Fique a
vontade. Escrivão! Traga um cafezinho para nosso convidado. Aceita um cigarro?
─ Pois é professor, temos aqui um
pequeno problema. Vozes anônimas nos informaram que você foi visto em reunião
com alguns camaradas bolchevistas. E isso é um problema sério na atual
conjuntura. Dizia o Delegado do Doi-Codi de Alagoas, colocando os pés sobre a
mesa, enquanto acendia um cigarro no escuro porão da delegacia. A luminária
esticada por um fio balançava num movimento pendular, a única iluminação do
lugar.
Sentado numa cadeira de madeira,
no meio da sala, com uma mala de roupas no colo, o professor permanecia calado.
Temia que tudo o que dissesse pudesse comprometê-lo, sabia que seu silêncio
poderia condená-lo. “Se ficar o bicho come, se correr o bicho pega”... passava
o pensamento como letreiro luminoso.
─ Você é uma pessoa de sorte
professor! Influente... conhece pessoas importantes que vieram interceder em
teu favor. Ganhou a sorte grande professor! Mas, decididamente não pode
permanecer mais nessa cidade. Pensei... pensei... pensei numa saída. Encontrei
uma proposta irrecusável. Dizia o delegado soltando baforadas de seu cigarro.
─ Nosso Estado precisa de
educadores que contribuam para melhorar as condições de vida da população. O
professor bem sabe que Alagoas ocupa o penúltimo lugar na educação, ganhando
apenas do Piauí. Também apresenta o pior resultado da saúde. A esquistossomose
ataca setenta por cento da nossa população, sem falar no crescente êxodo rural
por falta de condições de sobrevivência no campo, além das péssimas condições
das estradas comprometendo o escoamento da produção, sobretudo nos períodos
chuvosos.
─ A educação sempre foi o firme
propósito de nosso Governador Lima Filho. Precisamos levar a educação aos
confins de nosso Estado, educar nosso povo. Ai eu pensei que o professor
poderia ser conduzido até o sertão alagoano, para ministrar aulas no Mobral.
Imagine a notícia: Alagoas vence o analfabetismo! Com certeza isso traria
investimento e melhora no crédito junto
ao estrangeiro. Dindim no caixa!
─ Vamos enviá-lo a uma agradável
cidadezinha no fim do sertão alagoano. Um lugarejo denominado “Cavalo Morto”,
perto do município de Mata Grande. O que você acha da proposta professor?
Perguntou sarcasticamente o delegado, enquanto o escrivão mostrando os dentes,
rodava a manivela do “pau-de-arara”.
No dia seguinte, sem escolha, lá
estava o professor na boleia de um caminhão FNM azul, que fazia frete para
aqueles confins da terra. A viagem durou quase três dias de pernoite na
carroceria do caminhão. Quando chegaram a Canapi, barba por fazer, roupa
amarrotada, suja, o professor cheirava a bode.
Chegou no dia 19 de março, em
meio a comemoração de São José, padroeiro da cidade. O secretário do Prefeito
lhe deu acomodações e lugar para o banho. Enquanto o professor descia do
caminhão, dois indivíduos, chapéu, terno branco, o vigiavam à distância.
─ Achegue-se professor. Estávamos
a sua espera. O governador passou um rádio para o prefeito avisando de sua
chegada.
A noitezinha, em meio ao
foguetório foi convidado a subir ao palanque montado em frente a Igreja matriz.
O prefeito aproveitava o aglomerado e o foguetório para fazer um discurso.
No meio do discurso o prefeito arenista anunciou a presença do professor:
─ Meu povo! O Mobral chegou a
nossa cidade. É com muita honra que anuncio a chegada do professor que tanto
esperávamos. A educação é a base da prosperidade. Finalmente abriremos as portas de nossa escola para que
todos possam aprender ler e escrever.
Os minguados atrativos
financeiros para o magistério, a pobreza local e o trabalho de subsistência,
não despertavam o interesse na população pela educação. A grande maioria da
população era analfabeta. O professor não estava ali pelo dinheiro. Se não
fosse a imposição do governo militar, com certeza estaria longe daquele
fim-de-mundo.
Depois do discurso, fora do
palanque, o prefeito teve uma conversa particular com o mestre:
─ Professor! Se ensinar esse povo
desenhar o nome considere cumprida sua missão. É um povo acostumado ao trabalho
duro do campo, mãos grossas, não levam jeito para o lápis. O negócio deles é o
cabo da enxada. Assinando o nome daremos o diploma de alfabetização e se
tornarão eleitores. Meus eleitores!
Mas o professor era um homem
dedicado, admirador do método de Paulo Freire, tão combatido pelos militares,
acusado de tendências comunistas. Estava mesmo disposto a educar aquelas
pessoas, levar-lhes o conhecimento, fazer perceberem a exploração em que
estavam metidos e, um dia, quiçá, dela se livrassem. Diante do degradante
comentário do prefeito o professor preferiu dar um sorriso amarelo e responder
com o silêncio, sinal de reprovação.
─ Senhor prefeito! Vou me
retirar, pois preciso descansar. Amanhã começo a trabalhar. Preciso preparar a
escola para receber meus alunos. Tenha uma boa noite.
─ Boa noite professor. E cuide
bem do meu gado!
Chegado o novo dia, depois de arrumar a escola o professor
sentou-se junto à sua mesa esperando dos
adultos para as aulas do Mobral. Caiu a noite, esperou, esperou, esperou e
ninguém apareceu.
No dia seguinte voltou a esperar os
alunos, mas nada de nada. O desinteresse dos adultos levou o professor a abrir aulas às crianças. Logo no outro dia lá estavam eles, dois únicos
aluninhos sentadinhos nas carteiras, olhos brilhantes, pés descalços, roupinha
surrada. Criança é bicho curioso, necessita aprender, especular o mundo. O
sorriso do professor denunciava seu contentamento. Tinha jeito com criança e
logo cativou os meninos. Contou-lhes coisas sobre as estrelas, planetas, o
sistema planetário. Terminada a aula as crianças foram embora, admiradas com
tantas estórias sobre o universo.
Na manhã que se seguiu, indo para
o ministério, viu um aglomerado de crianças em frente à escola. Ao verem-no chegando correram em sua direção, o cercaram pulando e gritando:
─ Viva o professor! O melhor
contador de estórias do universo. Viva o professor! E que professor não ficaria
envaidecido com tanta festa? Fazendo algazarra, correram para a escola.
Sentados, balançando os pezinhos no ar pediram:
─ Professor conte mais estórias
sobre o universo? Conte, vai? A gente quer saber mais.
Aproveitando o interesse das
crianças, o professor pediu que se sentassem no chão, em torno de si, formando
um círculo.
─ Hoje vamos mais longe. Hoje é
dia de contos e estórias inventadas sobre o misterioso universo.
Lá no espaço há muitos planetas
girando em torno do sol. Tem um planeta com anéis que se chama Saturno.
─ E como chamam-se os seres de
Saturno professor?
─ Chamam-se saturnianos. Falam
uma língua estranha, o saturnês.
─ E o senhor sabe falar saturnês?
Perguntaram os pequeninos.
─ Evidentemente! Eu sou mestre em
saturnês. Sei ler e escrever!
– Ouvi dizer que um dia os
saturnianios invadirão a terra e quem não souber ler e escrever saturnês será
devorado.
─ Nossa professor! Então ensine a
gente a ler e escrever saturnês. Não queremos ser comida de saturnianos não.
Depois de muitas estórias, lá
pelo meio dia, a aula chegou ao fim. As crianças saíram animadas para aprender
saturnês, impressionadíssimas com as estórias. O professor juntou seus livros.
Enquanto fechava a escola, olhava as crianças voltando para casa numa prosa sem
fim.
Caiu a noite e o professor se
recolheu. De madrugada acordou com um alvoroço em frente ao seu quarto. Ao
abrir a janela deparou-se com uma multidão de pessoas, homens e mulheres. Ao
elevar o lampião em sua mão, notou que eram os pais das crianças que
freqüentavam a escola.
─ Professor, você precisa nos
salvar. Não queremos ser devorados pelos saturnianos. Queremos aprender a ler e
escrever saturnês. Nos ensine pelo amor de Deus.
Os pequeninos comentaram com seus
pais sobre as aulas e as estórias do professor. Aquele povo ignorante não soube
distinguir a fantasia da realidade e ficaram aterrorizados com a possibilidade
dos saturnianos invadirem a terra. O professor até pensou em explicar-lhes que
tudo aquilo era um terrível engano, mas a população não lhe deu oportunidade.
Carregando tochas na mão os homens praticamente intimaram o professor a
ensinar-lhes saturnês. Sem condições de se explicar, acabou por aceitando
ensinar-lhes saturnês.
No dia seguinte, a sala do Mobral
estava completamente lotada. Os adultos estavam ansiosos pelo ensinamento. Foi
então que o professor teve uma idéia genial: ensinar-lhes português dizendo que
era saturnês. Afinal, aquele povo não saberia distinguir uma coisa de outra. A
partir daí os alunos do Mobral nunca mais faltaram a nenhuma aula e foram sendo
alfabetizados dia após dia.
Enquanto isso, na capital corria
rumores de que os comunistas invadiriam o Brasil. Que havia uma base russa
instalada clandestinamente numa fazenda próximo a Mata Grande, prontos para
iniciar uma guerra química. Esse boato deve ter saído da boca dos olheiros do
governo militar que estavam em Canapi, observando o professor. Penso que
acharam estranho, que de repente, os adultos ficaram tão interessados nas aulas
do professor, uma espécie “revolução bolchevista” a eclodir no sertão alagoano.
Daí o boato, que levou o governador a deslocar uma equipe de militares para
investigar os fatos.
Foi assim que, na mesma semana,
algo inusitado aconteceu no distante sertão de alagoas:
─ Que barulho é esse que vem do
céu, professor?
Correram para a janela e viram um
helicópetero com o farol aceso circulando a escola.
─ Socorro professor! Socorro
professor! Gritavam desesperados os alunos, pensando que eram os saturnianos
chegando para devorá-los.
Quando os alunos tomaram coragem
e saíram da sala, se depararam com o professor conversando com um grupo de
militares vestidos com roupas próprias para uma guerra química. Bota, macacão
camuflado e máscara contra gás. Verdadeiramente pareciam mesmo seres
extraterrestres. Um dos alunos carregava uma pequena lousa na qual escreveram
com dificuldade, “sejam bem vindos ao nosso município“, ostentada de longe.
Depois da conversa com o
professor, os militares convencidos do equívoco, decolaram a aeronave e foram
embora. Os alunos gritavam aliviados, festejando o professor que lhes ensinou
saturnês, salvando-os da desgraça.
A notícia do disco voador de
Canapi correu mundo atraindo jornalistas e ufólogos do mundo todo, que vieram
entrevistar os moradores:
─ A terra há de me comê se eu
tive mentindo, mas juro que vi o tá de disco voadô. Girava, girava sem pará.
Desceu bem aqui em frente à escola, cumas luiz piscando. De dentro sairo
saturnianos, que só num devoraro a gente porque o professô nos livrô.
─ Os saturnianos, como era?
Tinham zóios enorme, fucim de porco e andava como nóis.
O professor achou aquilo tão
engraçado que não quis desmentí-los. Afinal era assim que o povo tinha
interpretado os fatos. E quem disse que o governo militar não foi mesmo um
governo alienígena, vindo para devorar o povo? Afinal, quantos foram os engolidos pelos porões da ditadura ou arremessados dos helicópteros em alto
mar?
Acabou se afeiçoando
aquele povo simples e carente, nunca mais quis retornar para a capital. Dali em
diante todos os adultos da redondeza se matricularam na escola e também levaram
seus filhos. O professor alfabetizou muita gente e mudou a cara daquele
povoado.