O PROCESSO ASSOMBRADO
Por MMendes
Ao chegar na cidadezinha parou para abastecer o veículo. Enquanto o frentista enchia o tanque, viu um empregado numa condição de risco. Trabalhava perto do poste de alta tensão.
- Mário, deixe de moleza. Termine logo esse serviço. – Dizia o barrigudo empregador logo embaixo, esbravejando ordens ao empregado que arriscava a vida.
- Não tenho nada com isso. Sou neutro e só me pronuncio depois de provocado. - Pensava o motorista, quase que indiferente.
Depois de abastecer saiu conduzindo o veículo até o destino.
- Ele chegou! Está descendo do carro.
- Ajam naturalmente para que ele não desconfie de nada. – Diziam aquelas duas figuras espiando pela fresta da janela.
Lá fora, depois de viajar quatro horas por uma estradinha que parecia levar ao fim do mundo, o sujeito descia do carro que acabava de estacionar. A rua estava deserta, o tempo estava nublado e o vento soprava “uivante” as folhas secas da rua. Abriu a porta do carro e ao pisar no chão daquele lugarejo, sentiu um arrepio e um pressentimento de mau agouro. Tomou a mala de couro às mãos e caminhou para o foro. Era o juiz substituto Sabino Teixeira que chegava para ocupar o lugar do titular aposentado.
- Cruz credo que lugar sinistro. – Disse o juiz benzendo-se com o sinal da cruz, ao notar que o prédio do foro era vizinho do cemitério. Em frente à entrada juntou os pés e iniciou a marcha com o pé direito.
Logo na entrada foi recebido pelo diretor da secretaria. Um homem assustador. Pálido, olheira azulada, olhos irritados, vestia roupa preta e gravata vermelha. Parecia um personagem de filme de terror.
- Seja muito bem vindo, doutor. Estávamos a sua espera. Mostrarei seus aposentos. O lugarejo era tão decadente que não havia hotel digno para o juiz se hospedar. Por isso, arrumaram seus aposentos no prédio do foro. Um modesto quarto apartamento.
Já era tardinha e as audiências começariam apenas no dia seguinte. O juiz pediu à secretária que separasse os processos da pauta. A secretária, velha e enrugada, era uma servidora às vésperas da aposentadoria. “– Ou da morte”, pensou o juiz.
Olhou os processos um por um. Notou que faltava um deles. Pediu para ver os autos quando a secretária e o diretor gritaram ao mesmo tempo:
- Não coloque as mãos nesse processo! - O juiz deu um pulo de susto.
- Vocês quase me matam do coração! Por que não posso ver esse processo? – Perguntou com a voz trêmula e olhos arregalados.
- É um processo de espólio contra espólio. - Desculpou-se o diretor, alertando o juiz para a maldição que se encerrava naqueles autos.
- Esse processo ficou esquecido dentro dos arquivos da Vara. O caso é tão antigo que todos os que passaram pelo processo morreram. O autor da ação, um empregado de nome Mário, morreu eletrocutado num terrível acidente de trabalho. Proposta a ação pela inventariante, o empregador morreu num acidente dias depois da citação, em circunstâncias misteriosas. O juiz que aqui estava à época, acreditava tratar-se de uma maldição. Temeroso foi incapaz de dar andamento ao processo. O processo é tão antigo que os próprios inventariantes e os advogados que patrocinavam a causa também morreram. O caso está paralisado há vinte anos sem solução.
- Credo! Eu que sou só um juiz substituto quero distância desse processo. Que o próximo titular resolva essa abacaxi. – Disse o juiz limpando as mãos no paletó.
Encerrado o expediente, o diretor e a secretária fechavam o prédio. O juiz recolhia-se aos seus aposentos.
- Doutor, ia quase me esquecendo. Só temos luz até as dez da noite. Alertou o diretor.
- Como luz até as dez da noite?
- Aqui é assim. Depois dessa hora desligam o gerador da cidade. Deixei um maço de velas no criado perto de sua cama. Tenha uma boa noite - Disse o diretor antes de sair.
Sem que o juiz soubesse, por um descuido, na pressa de ir embora, a secretária de audiência inseriu o processo assombrado na pauta de audiência e sem qualquer explicação, misteriosamente agendada para a meia-noite. O juiz andou apressadamente até o quarto e fechou a porta.
- Ainda por cima essa porta não tem chave. – Resmungou amedrontado.
Apressou-se deitar e logo dormiu. Às dez badaladas do sino da matriz a luz se apagou. Lá por vota das 23h30 o juiz acordou com passos pelo corredor. Abriu seus olhos arregalados e cobriu-se com o lençol até a altura do nariz.
- Quem é? – Perguntou com a voz um tanto trêmula.
Não houve resposta, mas os passos continuaram seguidos de gemidos, ruídos de correntes, rangidos e bater de portas. Lembrou-se das velas e acendeu uma. Nesse instante alguém bate à porta com três pancadas.
- Está na hora. Está na hora. Está na hora. Se não abrir eu vou entrar. Não agüento mais esperar.
- Disse uma voz desconhecida.
Levantou-se vestindo ceroulas e calçando os chinelos. Temia que se ficasse embaixo dos lençóis coisa pior poderia acontecer. Ainda que trêmulo, resolveu enfrentar o medo e ver o que se passava.
- Que...quem é você? O...o que vo..você quer? - Gaguejou o juiz.
O magistrado olhou o relógio de pulso e era justamente meia-noite. Abriu uma frestinha da porta e viu um vulto escuro no corredor. Fazia sinal que o seguisse. Abriu a porta e levantando a vela, medrosamente seguiu o vulto. A assombração poderia atentar contra sua vida caso contrariada, pensava ele.
Foi conduzido diretamente à sala de audiência. Chegando lá viu a sala repleta de fantasmas. Suas pernas tremiam, seu coração estava paralisado. A parafina quente da vela queimava sua mão e ele mal sentia. Estava apavorado. Sua vontade era sair correndo dali. Mas ir para onde? O lugarejo ficava no meio do sertão. Estava isolado. O único acesso à estrada era pela balsa, que só começaria funcionar no dia seguinte.
Uma assombração encapuzada apontou para o magistrado. Sentiu um frio na espinha e suas pernas congelaram. Não conseguiu dar um passo sequer. Os fantasmas avançaram sobre o juiz forçando-o a ocupar seu lugar. Colocou a vela sobre a mesa, o único lume do ambiente. O fantasma encapuzado assentou-se ao lado esquerdo da mesa e seguiu dizendo:
- Ele nunca me forneceu equipamentos de segurança. Minha jornada era muito extensa. No final do dia estava desgastado e já nem conseguia prestar atenção no serviço, expondo-me ainda mais aos riscos. Explicou o espírito com voz fantasmagórica.
- Determinado dia fui obrigado trabalhar próximo aos fios da rede de alta tensão e num pequeno descuido....bizzzzz...morri eletrocutado. Caí torrado ali mesmo. Noutro dia, já havia um outro empregado em meu lugar. Fui descartado como se descarta uma fatia de pão queimado na torradeira.
- Depois de morto vi minha mulher e meus filhos passarem fome e necessidade. Mendigaram ajuda ao patrão, mas ele nem deu bola. Os expulsou do escritório e disse que procurassem seus direitos. Assim deram início ao processo de reparação de danos.
- Diante de tanta crueldade não consegui ascender ao plano do além, ficando ligado ao processo até que fosse solucionado. Estou aqui aguardando que a justiça seja feita. - Disse a assombração do trabalhador que exalava odor queimado.
Quando terminou sua fala, um outro fantasma do lado direito da mesa prosseguiu dizendo:
- Eu fui egoísta e avarento. Sou o responsável pela morte desse empregado desencarnado. Depois de sua morte eu mesmo fui vítima de outro acidente. Eu deveria ter investido na redução dos riscos do ambiente de trabalho. Excelência, tudo o que o empregado disse é verdade. Eu confesso. Tive uma vida miserável, só pensava em lucro, não me preocupei com a vida dos empregados. - Declarou o de cujus.
- Só depois de morto é que pude perceber que toda a riqueza de nada me valia. Estou arrependido e meu desejo é reparar o mal feito. Estou preso ao processo até que justiça seja feita. Disse o fantasma do patrão.
Aquela audiência mais parecia uma sessão espírita. Ali estavam os fantasmas do empregado, do empregador, dos inventariantes e dos advogados que morreram aguardando a morosa solução. Vendo nos olhos dos presentes uma aflição pela decisão, o medo cedeu lugar ao sentimento de justiça. O magistrado lembrou do dia anterior, quando viu um empregado também de nome Mário trabalhando em condições semelhantes.
- Terá sido uma coincidência, um aviso ou visão de uma história que se repete todos os dias esperando que a Justiça caia do céu sobre nós, vivos ou mortos? Refletiu o juiz absorto nos próprios pensamentos.
Enchendo-se de coragem e sentimento de dever, vestiu sua toga negra como que forjada para a ocasião. Diante da confissão do empregador, proferiu a sentença que todos desejavam. Reparou o mal feito e com justiça determinou o amparo a família do empregado que por vinte anos viveu em estado de penúria. No mesmo instante as almas da sala se libertaram. Começaram a brilhar e desapareceram sob o olhar do juiz.
O magistrado respirou aliviado, acreditando que tudo havia acabado. Ledo engano. No instante seguinte ouviu um vozerio que vinha do cemitério ao lado. Abriu a janela com cautela e teve uma terrível visão. Os mortos levantavam-se dos túmulos e vinham em sua direção cercando o prédio.
- Justiça! Justiça! - Gritavam os cadáveres enfurecidos.
O juiz corria de um lado para o outro trancando todas as entradas. Mas, os mortos forçavam as portas e janelas. Quando passou pela mesa viu uma pilha de processos. Teve uma intuição:
- Esses processos...Seriam dos cadáveres lá fora? - Disse o juiz sussurrando.
Olhou as datas dos protocolos de distribuição e notou que eram muito antigas. Sem pestanejar sentou-se à frente da máquina de escrever e apressou-se julgar todos os processos que encontrou nos arquivos da Vara. À medida que aumentavam as decisões, os gritos diminuíam em proporção inversa. Proferida a última sentença fez-se um silêncio mortal, como que anunciando a chegada dos primeiros raios de sol.
Quando o diretor e a secretária chegaram, o juiz já estava vestindo seu terno cinza. Antes que o juiz falasse qualquer coisa, o diretor o cumprimentou estendendo a mão direita:
- Excelência, nós viemos agradecer e nos despedir. Também somos responsáveis pela morosidade dos processos. Tratávamos os processos como se fossem apenas um monte de papel, sem perceber que atrás da capa dos autos havia sofrimento de pessoas clamando por justiça. Por isso fomos amaldiçoados, tal qual os outros. Não poderíamos ascender ao plano espiritual até que os processos fossem solucionados. A justiça nos libertou e agora podemos seguir nosso caminho em paz. – Disseram.
Depois disso, saíram pela porta da frente e foram caminhando pela rua até sumirem de vista. Quando voltou os olhos para dentro viu um prédio abandonado, cheio de papeis pelo chão, paredes emboloradas e o teto repleto de teia de aranha. Não havia mais nada a ser feito naquele local. Não havia uma viva alma na cidade.
Colocou a mala no carro e foi embora, deixando o lugarejo para trás. Jurou celeridade processual em frente ao cemitério e que não deixaria nenhum processo esperando tanto tempo sem julgamento, especialmente processos que envolvam espólio.
O juiz aprendeu que não há vida sem justiça. Apesar de ter libertado as almas penadas, ficou com a sensação de que justiça tardia não é justiça, mas sim injustiça manifesta.
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ResponderExcluirOlá Marco
ResponderExcluirLi esta sua crónica e fiquei 'assombradamente' encantada :D. Adorei. Há o tal ditado que diz que 'a justiça tarda mas não falha'. Pois eu acho que só o facto de tardar já está a falhar.
Ainda bem que o 'juiz da crónica' aprendeu a lição e resolveu, a partir daquele momento, não demorar os processos de julgamento (não fosse o diabo tecê-las :D LOLOLOLOL)
Um abraço e continuação de boa escrita
Inês Dourado
(PS.Veja só: então não é que tenho como sobrenome, no singular, do sitio onde você trabalha - Dourado. :D )