segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O abominável homem de Ourinhos



O ABOMINÁVEL HOMEM DE OURINHOS


Por Marco Mendes


Ontomar não aceitou ser monitorado pelos sistemas informatizados do governo federal. Saiu correndo da fila do chip. O decreto presidencial foi categórico, todos deveriam implantar um chip de monitoramento no braço direito e a recusa constituiria crime de lesa pátria. Nunca mais se ouviu falar de Ontomar. Correu o boato que foi abatido pelos drones caçadores da guarda de segurança pública. O fato é que nunca mais se ouviu falar dele.

Naquela nova sociedade nada poderia ser feito às escondidas. Todas as transações e negócios só poderiam ser feitos utilizando-se o chip, que acabou por substituir os cartões de débito e de crédito. Era impossível comprar um pão francês sem o chip. Além disso, o chip monitorava as ondas cerebrais e antecipava-se, enviando ofertas e notícias pelos óculos do Gúgou, mesmo para os desejos inconscientes. Não havia mais necessidade de declaração de renda, pois o governo monitorava absolutamente tudo. Nada estava fora do sistema, ou pensava-se não estar fora do sistema. O chip acabou com a intimidade. Toda verdade era pública de agora em diante. Por isso Ontomar resistiu e fugiu. Não queria ser uma peça do sistema. Coitado, até onde se sabia, fora do sistema não teria sobrevivido.

Certo dia, quando o drone do Gúgou filmava as montanhas de Ourinhos setentrional, para atualizar sua interface, revelou um ser desconhecido do sistema. Nada escapava às câmeras 3D de alta resolução dos drones. Vasculhavam habitualmente cada centimetro do planeta. Técnicos analisaram detalhadamente as imagens, mas não conseguiram identificá-lo. Afinal, o programa do governo não era tão eficaz e absoluto assim. Alguém ficou de fora. Quem seria? 

A notícia correu mundo e não tardou de apelidarem a criatura de O Abominável Homem de Ourinhos. Curiosos e pesquisadores abarrotaram os hotéis da cidade na tentativa de encontrar o misterioso bicho. 

Num dia qualquer, lá pelo ano de 2017, uma equipe de escoteiros acampou lá para as bandas do setentrião, na tentativa de ter um encontro imediato com a fera. De noite, à beira da fogueira, os escoteiros assavam bacon e fritavam ovos. Corria o boato que o abominável homem de Ourinhos era atraídos pelo cheiro de bacon com ovos. De madrugadinha, quando o vento cessou, as folhagens de um arbusto começaram a chacoalhar com força. Os escoteiros se abraçaram com medo e eis que surge do meio do capoeirão uma figura esguia, bronzeada, barba e cabelos brancos, olhos arregalados, que saltou sobre a frigideira e devorou num só instante um quilo de bacon e seis ovos. Gritaria, esparrama, correria, alvoroço. Não ficou um prá contar a história. Ou melhor, um escoteirinho, o menor deles, caiu e não conseguiu acompanhar os outros. Ficou cara a cara com a abominação. 

Caído indefeso, a fera se aproximou com os braços estendidos em posição ameaçaradora. Mas, para seu espanto, a criatura o socorreu e disse: - Calma, não vou lhe fazer mal algum. Ficaram por ali conversando. A criatura se apresentou. Era Ontomar que fugiu para as montanhas que ficam na divisa do norte de Ourinhos para não ser chipado. Fazia anos que comia chuchu e rabanetes que ele mesmo plantava próximo da caverna em que foi morar. Virou um eremita fora do sistema. Tinha verdadeira paixão por bacon e ovos, mercadoria que não conseguia mais adquirir pela ausência do chip.

- Enquanto o sistema escraviza o homem tabulando-o, ditando o que deve ser, transformando-o em instrumento para melhor controlar, é a prerrogativa de ser e não ser, de ser visto ou se resguardar, pensar e não pensar, de expor-se ou reservar-se, de crer ou duvidar, quem nos liberta. E livre podemos traçar nossos próprios caminhos rumo a felicidade, que para cada um está num lugar diferente. Preferi a dureza da liberdade ao benefício da escravidão. Desabafou Ontomar.

Fez um acordo com o menino. Ontomar fez caretas ameaçadoras e deixou o menino tirar fotos para mostrar O Abominável Homem de Ourinhos ao mundo, em troca do silêncio sobre seu paradeiro. Despediu-se dizendo: - Quando voltar aqui traga uns pãezinhos franceses, eu morro de vontade.

Foi assim que o Abominável Homem de Ourinhos se tornou uma lenda na região e, por via reversa, embora vivesse na pobreza, acabou por enriquecer a cidade.


2 comentários:

  1. Depois de saborear um quilo de bacon, seis ovos e ainda chuchu e rabanete, só posso dizer que gostei demais, hahahahaha...

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  2. Muito Bom! A parte que mais gostei, foi, "Preferi a dureza da liberdade ao benefício da escravidão"Parabéns Dr. Marco.

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