O PÃO JUDICIAL
MMendes
Quando era jovem passava todos os dias em frente a uma instituição financeira. Via os bancários bem vestidos, sentados, manuseando papeis, datilografando. Atendiam os clientes sempre com sorriso de cordialidade. O expediente bancário de seis horas e o ambiente calmo me levou pensar que o trabalho era fácil. Essa era a realidade vista de fora para dentro. Meu primeiro emprego foi num banco. Lá conheci a realidade vista de dentro para fora.
O cliente tem sempre razão, e por isso deveríamos sorrir mesmo diante do tratamento áspero e deseducado do cliente. Os serviços eram de movimentos repetitivos, sujeito metas de trabalho quase impossíveis, a chefia não era nenhum pouco amistosa. Vi muitos colegas adoecerem deprimidos ou com lesões por esforços repetitivos-LER. A realidade vista de fora era mais bonita. Um ano e meio depois pedi demissão do emprego.
Me formei bacharel em Direito. Pensava como advogado: “Vida de juiz é que é boa. Ganha uma fortuna, trabalha pouco e manda em todo mundo”. Havia até um chavão entre os advogados: “Alguns juizes pensam que são deus, outros têm absoluta certeza”. Passaram-se alguns anos e ingressei na magistratura através de concurso público. Quanto engano, quanta semelhança com os tempos de bancário. O magistrado está sujeito a inúmeras metas de trabalho impostas do CNJ, pela lei, pelos Tribunais Superiores. Ao invés de mandar, descobri que juiz só obedece a lei, as decisões administrativas e as resoluções. O juiz é réu na mídia, culpado de não dar conta dos conflitos da sociedade (apesar de não ser ele quem os provoca). De fora nem se vê nem se sente que a estrutura de trabalho é deficitária. O juiz não esta sujeito a carga horária mas fica refém do tempo. Acho que é justamente por isso que minha jornada diária ultrapassa 13 horas de trabalho. Poderia arrolar inúmeras causas de minha desilusão quanto a vida boa do juiz. Mas, não vale a deletar a ilusão. Diz o ditado popular: “Sem ilusão não se vive”. A ilusão e como a miragem, nos faz caminhar no deserto a procura de água.
O ano estava pela metade, mas minha energia humana já estava no fim. Desgaste físico e mental pelo trabalho extenuante. Descobri que juiz é humano. O trabalho é intelectual, todavia quando se mergulha para atuar como mediador, conciliador, investigador e julgador do conflito dos outros, o corpo padece junto com a mente. São dezenas de audiências diárias, escutando, ponderando, dialogando e tendo paciência, muita paciência. O trabalho exige uma atenção profunda. Nada pode passar desapercebido aos olhos do juiz. Os olhos do juiz substituem os olhos da Justiça. A Justiça é cega, mas o juiz não pode ser.
Num outro dia fui “coagido” pelo cardiologista a fazer um exame de mapeamento da pressão arterial. Ele disse que minha vida dependia desse exame. Fui coagido a fazer o exame sob ameça de morte. Diante de tamanha coação, não teve jeito, fiz o exame. Um aparelho preso ao braço dia e noite, monitorando a pressão de tempos em tempos. Conclusão do laudo: minha pressão arterial como juiz na audiência e como motorista na hora do “rush” era a mesma. Laudo a parte tirei minhas próprias conclusões: Estar em audiência é como estar no trânsito, cada parte dirigindo suas pretensões em alta velocidade, muitas vezes ultrapassando o sinal vermelho, freadas bruscas, convergências arriscadas e de vez em quando...bum! Colisão frontal com vítima fatal. É preciso cuidar da saúde, já vi advogados e partes sofrerem infarto durante a audiência.
O trabalho daquele ano foi desgastante e eu estava um tanto deprimido. Minha vontade de viver estava a beira da falência. Quando pensamos que estamos no fim, nos esquecemos que todo fim é senão um recomeço. A vida é extraordinária. Nessa época participei de um encontro de magistrados. Em meio as palestras, uma foi de qualidade de vida da magistratura. Participei de uma dinâmica de grupo com os colegas, parecia uma brincadeira. O palestrante espalhou três montes de cartas sobre uma mesa e disse:
- Pensem fixamente num problema de suas vidas. Depois venham até a mesa e escolham uma das cartas azuis. Ali estará escrito o início da solução de seu problema.
“-Que besteira”, pensei. Mas, entrei no jogo e pensei no meu problema:
- Meu trabalho está me desgastando e me fazendo sofrer.
Meu coração se fez silêncio profundo, levantei-me da cadeira e fiz uma curta prece para que minha mão se movesse para o destino certo. Peguei uma carta azul e a trouxe do lado esquerdo do peito, perto do coração. Sentei-me novamente. Quando li seu conteúdo fiquei surpreso com a frase que ali está inscrita: “Teu trabalho ajuda muitas pessoas”. Em seguida uma voz misteriosa sussurrou em meu ouvido direito:
- Teu trabalho é o pão da vida!
A voz vinha de dentro. Seria a voz da consciência? Ouvindo aquelas palavras meu espirito estremeceu, meu coração ficou pequenino e minha mente foi conduzida por inúmeras situações. Lembrei-me da família e do meu trabalho como sustento. Pensei nos servidores da Vara que por causa do meu trabalho estavam ali a me auxiliar, dali retiravam o sustento. Pensei em cada servidor que muitas vezes me “usa” como confessor de seus problemas mais íntimos, pedindo socorro e auxílio. Vi os braços dos incontáveis reclamantes e reclamados e seus advogados, estendendo suas mãos para que eu lhes fartasse de justiça. E a voz repetiu:
- Teu trabalho é o pão da vida!
Nesse instante meu coração se encheu de arrependimento de ter amaldiçoado meu trabalho, meus olhos se enxeram d'água, não havia outra forma para exprimir os sentimentos. O palestrante continuou a experiência:
- Pensem novamente no problema, pensem com convicção. Levantem-se novamente e retirem uma carta amarela. Lá estará o motivo pelo qual você não consegue resolver seu problema.
Novamente pensei no desgaste e no sofrimento pelo trabalho. Com o coração apertado retirei uma carta. Olhei-a apressadamente, estava aflito para saber o conteúdo. Quando li a carta engoli seco. Ali estava escrito a razão do meu sofrimento: “Você perdeu a esperança”.
Lembrei-me de situações do passado em que havia perdido a esperança e de como os problemas despareceram levados por uma força oculta e inexplicável. A voz sussurrou mais uma vez em meu ouvido:
- Por que você perdeu a esperança?
Cerrei os lábios para trancar o choro. Aquele sentimento contido, reprimido, fez o corpo tremer e chorei por dentro. A voz me acalmou:
- Não fique tão aflito, tudo vai se arrumar em breve, tenha confiança.
A dinâmica de grupo continuou:
- Pensem novamente no problema. E tirem a carta roxa. Nela estará escrito o nome da cor da solução do seu problema. Como das outras vezes fui até a mesa, tirei uma carta roxa e voltei. Nela estava escrito: “Integridade”.
- De que integridade estamos falando? Afinal me sinto um homem integro, honesto e cumpridor de meus deveres. Pensei.
Aquele que me falava sussurrou:
- Seu espírito se integra na medida que seu corpo se desintegra.
Foi ai que veio a compreensão. Através do trabalho eu podia compreender o espirito humano e a partir dali ajudar as pessoas a saciaram sua sede e sua fome de justiça. Meu trabalho não me desgastava e sim me transformava, me colocava à serviço do próximo. Não era servidão de um trabalho quase escravo, mas “ser” de existência e “viço” de vida. Meu trabalho era fonte de luz, especialmente para meu espírito e para meus olhos de magistrado. Meu trabalho era o pão da vida e era preciso partilha-lo para saciar a fome de muitos.
Com energia renovada segui otimista até o final do ano. É verdade que bem no final sofri uma crise de labirintite e variação da pressão arterial. Segundo o médico a causa estava ligada ao estresse do trabalho. Esqueci que o espírito está pronto, mas o carne é fraca.