Sozinho naquela
cidadezinha do interior, Zé Braulino resolveu comprar uma tela e preencher o tempo com uma pintura. Não tinha dons artísticos não, mas sentia-se
muito solitário, queria um pouco de companhia. Então, resolveu pintar uma família,
ainda que fossem apenas figuras por ele próprio idealizadas, pintadas numa
tela. Juntou os trocados, foi até a papelaria mais próxima, retirou o dinheiro
embolado do bolso e comprou a tela, bisnagas de tinta e uns pinceis.
Empregou ali todas suas economias.
Chegando em casa
improvisou um cavalete, alçou a tela sobre ele e espremeu as tintas num prato
velho. Sacou um dos pinceis como se fosse um espadachim e mãos a obra.
Iniciou a pintura conforme lhe aprouvesse, começando a pintura por um belo menino. Um tanto pálido é verdade, sem o domínio das cores, exagerou no
amarelo. Chamou-o de filho.
Vendo que a pintura ficou
um tanto pálida, tentou corrigir com novas pinceladas. Sem destreza do
pincel derramou um pouco de tinta preta sobre a tela, respingando sobre o menino. Ficaram parecendo tatuagens. Zé Braulino ficou louco da vida, pois detestava
tatuagens. A pintura não havia saído como queria. Contudo, estava determinado a
pintar uma família e continuou sua obra. Para tentar corrigir o erro, na
tentativa de disfarçar a primeira figura, idealizou pintar outra figura ao lado.
Talvez as pessoas não prestassem atenção à primeira figura. Lançando o pincel
sobre a tela fez a figura de uma menina, que chamou-a de filha. Essa nova figura
não saiu de acordo com seus planos, ficou um tanto desfigurada. A menina não agradou o pintor,
por isso levou uma surra de pincel.
Zé Braulino logo partiu
para pintar uma terceira figura, a qual chamou de mulher. Afinal, já tinha dois filhos e eles não poderiam ficar sem uma mãe. Como havia de se esperar de um
pintor improvisado, não afeto à arte da pintura, carregou demais no vermelho. Fez
o rosto da mulher parecer uma pimenta. Como um espadachim enfurecido sacou
outro pincel do bolso e lançou as cerdas contra a tela. Travou um medonho duelo
com a mulher. Desse duelo respingou tinta por toda a sala, sujando
sua roupa e até os móveis que estavam por perto. Até o cachorro que dormia
sossegado ali perto saiu colorido. Procurava amoldá-la, reformá-la, para que
ficasse tal qual era seu desejo. Mas, sua falta de habilidade com o pincel delineava uma figura surreal. Os respingos muticoloridos e traços indesejados
mancharam e riscaram toda a tela. Curiosamente os respingos improvisados modelaram
uma figura pequena e sorridente no canto esquerdo, que ao final Zé Braulino chamou de filhote. Batizou o quadro com o nome de “Família” e o pendurou nos fundos da casa, pois se envergonhava de tudo o que havia feito e queria esconder o quadro.
Deprimido com sua obra, embriagou-se. Num momento de fúria, na tentativa de destruir sua criação,
ameaçou a tela com fogo, que ficou toda chamuscada. Passada a bebedeira resolveu
vendê-la. Foi até a feira da praça central e ali a ofereceu
por qualquer preço.
Nesse mesmo dia, passava
pela praça um senhor pomposo, fraque e cartola. Zé Braulino não sabia, mas era o demônio disfarçado. Olhando aquela tela e o estado deplorável de Zé Braulino, ofereceu-lhe uma vaca em troca do quadro. Zé Braulino aceitou na hora,
pois seria uma maneira de resgatar um pouco do dinheiro investido no material
utilizado. Antes tivesse trocado o quadro por feijões mágicos, mas não foi assim.
A vaca era velha, não
dava leite, logo adoeceu e morreu. Zé Braulino caiu em desgraça.
Mulambento, percorria as ruas da cidade pedindo esmolas. Certo dia,
revirando o cesto de lixo, encontrou um jornal que lhe chamou a atenção. Ficou
surpreso quando viu a notícia de que seu quadro foi reconhecido arte
contemporâneo de ponta. Tal qual Monalisa, as pessoas do quadro tinham um
sorriso sinistro, um misto de choro e sofrimento, ora parecendo rir da sorte do pintor,
ora parecendo chorar a desgraça do abandono. O ardiloso diabo sabia o valor
do quadro desde o momento em que lançou os olhos. Pagou uma bagatela pela “Família”
e agora tinha uma fortuna em suas mãos, enquanto Zé Braulino morria à mingua.
Desesperado Zé Braulino ajuizou
uma ação contra o demônio na tentativa de desfazer a venda. O Juiz da causa era rigoroso
e não gostou nenhum pouco do fato de Zé Braulino ter maltratado e abandonado a “Família”.
Zé Braulino percebeu a enrascada em que se meteu e aceitou um acordo. Obrigou-se
a comparecer todos os dias no museu do capeta para espanar o pó da “Família”, em
troca de um lugar para dormir e um prato de comida.
O velhaco demônio, além
de ficar com a “Família”, ainda se apoderou da alma de Zé Braulino, aprisionando-o
num contrato que vigoraria por toda a eternidade. Esse é o destino de quem maltrata
e abandona sua família e, ainda por cima, deixa-se levar pelo ardil do capeta.