A MOSCA E A ARANHA
Por MMendes
Saindo em disparada rumo às nuvens, recolheu as asas deixando que a gravidade drenasse lentamente seu movimento até que parou completamente no ar, deu uma guinada e começou a cair vagarosamente, como uma cabeça de martelo lançada ao ar. Quase pareceu que se espatifaria no chão, mas no momento certo, habilidosamente abriu suas asas, recuperou o vôo desenvolvendo elegantemente uma curva no espaço. Em seguida manobrou em “looping” desenhando três círculos perfeitos, manobra acrobática que deixaria qualquer um completamente desorientado, mas não ela, a fabulosa mosca.
E lá vai novamente conduzindo seu corpo ao estol de maneira assimétrica. Guinava para o lado gerando uma trajetória em parafuso, como um avião abatido em combate. Mas, ao contrário, o inseto voador nivelou-se ao solo, ganhou altura e desapareceu no horizonte daquela tarde avermelhada de primavera.
Apaixonada por aviação passava horas e horas admirando as acrobacias dos cadetes. Expectadora assídua, pousava todos os dias sobre a mesma folha de uma palmeira no jardim da Força Aérea. Sem que a mosca notasse, não muito longe, uma aranha a espreitava todos os dias, fitando-a veementemente com seus oito olhos bem abertos. Determinado dia, antes da chegada da mosca, a aranha teceu uma fina teia, quase invisível, no exato lugar onde a mosca pousaria.
No dia seguinte, no horário de sempre, lá vinha a mosca desenvolvendo um vôo de costas, seguido de um rolamento lateral em torno do eixo longitudinal do corpo. Quando estava para pousar, sentiu prender-se no ar. Era como se uma mão invisível a tivesse capturado. Bateu as asas, esperneou, contorceu-se, mas nada de escapar. Havia sido apanhada pela teia.
Os movimentos da mosca balançaram a teia e o aracnídeo que aguardava num canto, iniciou uma lenta caminhada. Pé ante pé, desviava-se dos pingos de cola que pontilhavam cada fio de sua armadilha. A mosca apavorada observava cada movimento de sua predadora. Sem poder escapar pensou: “-É derradeiramente meu fim”. A aranha era enorme perto da pequena mosca.
Chegando bem perto, com seus olhos iridescentes como bolhas de sabão, fitou a pobrezinha por um instante. Tomou a mosca em seus tentáculos cabeludos e começou enrolá-la, prendendo-a num novelo de seda. Depois amarrou o casulo firmemente num dos cantos da teia, saindo vagarosamente.
A mosca completamente imobilizada pensou: “-Me amarrou para devorar-me mais tarde. Quem sabe na hora do almoço? Eu que amo tanto a liberdade do céu, vou acabar morrendo aqui, presa, amarrada, inerte. Que triste fim para uma mosca aviadora”, lamentava. Chegou a hora do almoço, passou a hora do jantar, caiu a noite e nada da aranha aparecer. A mosca não cochilou um só momento, com medo de ser devorada dormindo.
Chegou o dia seguinte, pouco antes dos aviões iniciarem a decolagem, a aranha reapareceu, levantou seus tentáculos apanhando o casulo. Nesse momento a mosca gritou: “-É agora, guardou-me para o café da manhã. Socorro, socorro!”. Misteriosamente a aranha carregou delicadamente o casulo até um local de privilegiada vista das acrobacias aéreas. Em seguida retirou-se. Com o coração acelerado, a mosca quase nem conseguiu prestar atenção aos aviões. Depois de um tempo a aranha voltou, recolheu o casulo e prendeu-o novamente no mesmo lugar de antes, retirando-se em seguida.
A mosca não compreendia quais eram as intenções da aranha e não sabia o que pensar: “-O que pretende a aranha? Comer-me enquanto me distraio com os aviões? Ela quer sugar meu néctar enquanto me alegro? Será que o néctar da gente é mais gostoso quando estamos alegres?”. Entardeceu, passou a noite e nada da aranha aparecer. A mosca prisioneira estava entristecida com sua sorte. No dia seguinte, antes da decolagem dos aviões, surge novamente a dominadora, repetindo tudo o que havia feito antes. Mas o inseto prisioneiro sequer prestava atenção aos aviões, cabisbaixo, aborrecido. A vida perdera o sentido.Depois de um tempo, a aranha recolheu o casulo novamente, repetindo todo o ritual. No quarto dia tudo igual.
Em completa solidão e profunda melancolia a mosca pensava na morte e todas as conquistas de vida deixadas para trás, a fama, o chapeuzinho de aviador, os lugares que não conheceu, os prazeres que não viveu.
- Quem sabe ao menos um sopro de vida subirá às alturas, deixando meu corpo sucumbir no fundo da terra, ou na barriga da aranha? Tudo é vaidade, tudo é vaidade - Lamentava a mosca. Nunca havia pensado na morte. A vida havia sido prazerosa demais, por isso nunca sentiu necessidade de uma oração sequer, uma conversa com Deus. Mas, naquela hora sentia-se impelida e ensaiou uma pequena oração, embora sem aquela retórica toda.
- Oh meu Deus, não me importo de morrer, mas se for possível, eu prefiro não estar por perto quando isso ocorrer.
Por que somos todos assim? Passamos a vida construindo um império e no instante final percebemos que só temos um castelo de areia? Corremos atrás da fama, da posição social e da riqueza e no final descobrimos que acumulamos apenas vaidade dissipada pelo hálito da morte?
No quinto dia, esperando que a aranha aparecesse no momento da decolagem dos aviões, a aranha não veio: “- Tem alguma coisa estranha no ar. Cadê a aranha?”. Antes mesmo de consumar seus pensamentos, sentiu um bafo quente na nuca e inesperadamente seu corpo girou de forma violenta. Parou olho a olho com a aranha que lhe deu um enorme beijo na boca.
- Meu amor! Clamou a aranha aos prantos. - Te amo desde o primeiro momento que o vi. Quis vê-lo e abraçá-lo todos os dias de minha vida. Temia que um dia me abandonasse, nunca mais aparecesse, despedaçando meu coração. Mas agora compreendi, prender-te foi um grande erro. Se não fores feliz, igualmente eu não serei, pois esse é o destino daqueles que amam. Os verdadeiros amantes compartilham as alegrias e as tristezas. Sei que para ti a felicidade esta em voar livremente pelo céu e que não serias feliz aqui.
Aos prantos a aranha começou a desatar as linhas do novelo libertando a mosca boquiaberta. Livre, saiu em vôo disparado dando mil e uma cambalhotas e rodopios pelo ar, enquanto a aranha derramava lágrimas de amor que decoravam teia. A mosca nunca mais voltou. Mas, a aranha não sofreu, apenas amou e amou muito. Aprendeu que amar não é sinônimo de prisão, o verdadeiro amor é libertador.